quarta-feira, 7 de abril de 2010

ESCÂNDALO SEM ORIGINALIDADE





“Por várias vezes falou em se lançar ao jornalismo, e sempre seus amigos lhe diziam: evita fazer isso. Seria a sepultura do belo. (...) Não resistirias à constante alternância de prazer e de trabalho de que é feita a vida dos jornalistas, e resistir é o fundamento da virtude. Ficarias tão encantado por exercer o poder, por ter direito de vida e morte sobre as obras do pensamento, que te tornarias jornalista em dois meses. Ser jornalista é passar a procônsul na república das Letras. Quem tudo pode dizer chega a tudo fazer. (...) Já tens em demasia as qualidades do jornalista: o brilho e a rapidez do pensamento. Não te privarias nunca de um dito do espírito, embora fizesse ele chorar a um teu amigo. (...) O jornalismo é um inferno, um abismo de iniquidades, de mentiras, de traições, que não se pode atravessar e de onde não se pode sair puro, senão protegido, como Dante, pelos louros divinos de Virgílio”.

HONORÉ DE BALZAC (Ilusões Perdidas)



Chico Vivas




Se é para vender jornal, então uma foto...sensacional(ista), uma apenas a mais na longa lista de clichês à venda nesse diário comércio entre a nossa avidez, insaciáveis pelo que quer que seja (bem vendido, bem fotografado) e a necessidade dos fabricantes de que-quer-que-seja(s) em rolar os estoques.

Assim, que tal a foto de um homem, dos mais comuns, aparentemente; de altura, por enquanto, imprecisa – e talvez esse seja mesmo um detalhe sem maior importância, a não ser que pouco ou nada sobre ele se tenha a dizer, o que fará de um ou outro centímetro motivo de acaloradas discussões? E ele está, como se a nossa espera, no alto de um prédio, algo desequilibrado (não o prédio), não se sabendo ao certo se esse seu caráter trôpego diz respeito ao seu corpo eventualmente alcoolizado ou ao seu espírito pusilânime. De fato, se fato realmente há aqui, dá a impressão de que, a qualquer instante, ao menor sopro, sob a inspiração da plateia que embaixo vai aumentando, impossível já contá-los, mais ainda de se dizer de onde surgem, ele poderá cair: que tal uma foto assim?!

A foto enquadra o fato de um ponto de vista “baixo”, um tanto distanciado, mas presente o bastante para não deixar escapar à lente um lance sequer. Pode-se ter a visão da multidão, clamando o que a foto dificilmente revelará; e com essa posição também se cria a ilusão de que a altura é bem maior do que deve ser na realidade – e leitor nenhum que se preze, devorador desse jornal de cotidianos flagrantes, um jornal que não preza tanto assim seus leitores, embora lhes ofereça banquetes bizarros, vai até lá, próximo do homem, para tirar a prova, com régua na mão, de sua altura de verdade. O ângulo escolhido alcança seu objetivo de tornar tudo o que vê, tantas vezes um quase-nada, mais grandioso do que é, e é possível que ali nada haja de tão grande assim: nem o prédio em si, que pode ser menor do que aparenta, nem o homem em si, que pode ser somente de altura medianamente baixa, e até mesmo a tal multidão, então supervalorizada em seu número de eventuais passantes e de titulares desses flagras rotineiros.


Quem vier a ler o jornal, mais interessado na imagem e buscando as palavras só para confirmarem que seus olhos não se enganaram, de cara, desvenda esse mistério-de-rua, enigma ao ar livro: é tão-só mais um homem qualquer, no uso legítimo de seu direito de viver com dignidade ou, não a tendo mais, de morrer à hora em que desejar; ou ainda, não pretendendo deixar tão cedo (não se conhece ao certo sua idade) esta vida, deseja apenas para si mesmo a atenção dos outros, mesmo que tantos desses alheios já sejam quase profissionais em se aglomerarem, atendendo a um chamado de sua natureza, amante de qualquer fato que fuja, mesmo que só aparentemente, a sua própria rotina, embora eles mesmos experimentem, sem toda essa alegoria pública, mortes diárias, carentes, no entanto, desse espetáculo.



O homem no alto do prédio – que, aliás, é alto mesmo, e não um truque do clichê vespertino, ainda que não dos mais elevados, ao menos se tomarmos como medida referencial os mais altos prédios – é alto, ainda que, mesmo acima da média da altura dos homens comuns, não seja, entre os agigantados (uma delícia para o jornal), páreo para este grandalhões de livro de recordes; e esse homem não alimenta qualquer intenção de se atirar daquelas alturas, seja porque encara sua vida medíocre de homem assim com subida dignidade (quantos lances, essa “subida”!), seja porque, discreto na sua vida diária, tanto que não se o nota quando ele próprio se faz passar por eventual pedestre, arrancado de suas divagações habituais por um homem no alto de um prédio, hesitante, queira viver apenas alguns minutos de exibição fugaz.


Ele lá está justamente para salvar uma vida: mas que não se diga isso ainda aos observadores da cena, pois seria, sobre suas cabeças acaloradas, um balde de água das mais frias (sem o devido refresco), fazendo-os se dispersarem, inviabilizando então a provável sensação da foto e, em consequência, a venda provável de jornais, bem acima da média dos dias em que as fotos na primeira página só estampam as baixezas rotineiras, inclusive a de homens “altos” circunstancialmente rebaixados à altura dos mais comuns.


E não é a vida de um outro homem, numa solidariedade entre semelhantes, que está em perigo, pondo, na tentativa de salvá-la, em risco a própria vida do homem que vemos e do qual já sabemos ser alto para a média dos homens conhecidos por serem medianos. Esse homem que insistentemente vem se fazendo citar aqui, desconhecido seu nome ainda, está ali para salvar a vida de uma ave potencialmente suicida, que a todo instante ameaça se atirar. Como a tal ave, um pássaro canoro em crise durante seu período de muda, mesmo sendo, em tamanho, páreo para seus semelhantes, é, ainda assim, pequena em demasia para os enormes vãos dos olhos da multidão faminta que só enxerga, na cena, o homem, e nada vê da ave, porque muda, podendo ouvir do pássaro suas despedidas afinadas, como se um cisne em canto derradeiro.


Para apressar a história, porque isso é jornal e não um livro de mistério – um livro desses quer prender o leitor o máximo que pode, já o jornal precisa apenas de sua fidelidade diária – e porque, embaixo, os repórteres, uma multidão deles, entre os quais os profissionais que chegaram de pronto e os amadores que sempre estão de passagem, gritam que precisam entregar a matéria, como se pedissem urgência ao homem, e este, como se num ato de suprema coragem (que leitores elevados de jornais baixos preferem chamar de covardia), faz, lá no alto, uma manobra arriscada para salvar o pássaro, quando a ave já estava em pleno salto mortal.


Sem asas, o homem cai. Salva a ave, satisfaz muitos desejos, concentrados nos jornais, com uma sequência de fotos sensacionais. E ainda mais do que o esperado em ocasiões assim, já que a primeira página vai estampá-lo no chão, cercado pela multidão reunida artificialmente (porque muitos só esperavam o salto, sabendo que dali, agora, do chão, ele não passaria), com o pássaro, vivinho da silva, na mão, tendo, repentinamente, recuperado a voz para um réquiem.


Louve-se o jornal por, num esforço extremo de reportagem, sensacional mesmo, ter descoberto que o tal homem, anônimo até então, apesar do autor da matéria descrevê-lo como um suicida em potencial, que nem a beleza de um pássaro heroico conseguiu salvar do seu desejo de morrer por ter, cantor, perdido a voz, tinha, como todo homem, de qualquer altura, um nome: e tinha nome de ave – chamava-se Maria. Seu sobrenome, comum demais para um cantor de hoje em dia, mesmo os muito vivos, um Silva mediano, desapontou, quanto às vendas, o jornal.


Mas, sem escapar de mais um clichê, amanhã, todo leitor sabe, em suas angústias repetitivas, é um outro dia – como também sabe a multidão de homens eventuais.




CHICO VIVAS


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