domingo, 7 de novembro de 2010

UMA CADELA CHAMADA LEMBRANÇA








A lembrança, ladra contumaz do meu sossego, morde. E morde como um cão, sequer um que, aparentemente feroz ou, ao menos, pouco amistoso, dá sinais evidentes disso, fazendo com que não nos aproximemos dele(a) ou, desejosos, ainda que com os riscos conhecidos, de fazê-lo, façamo-lo cuidadosamente, prontos, como que de sobreaviso, alertas para uma emergência, para nos evadir ao primeiro rosnar, longe já quando, afinal, mostrar seus dentes, incisivamente caninos.


A lembrança, por vezes, exibe-se como que um bichinho abandonado, largado em qualquer canto com total desumanidade, sem dono que lhe garanta, mesmo que segundo sua própria e imprevisível vontade, o carinho necessário que justifique sua submissão, orelhas baixas, olhar de uma doçura quase mítica, e um sorriso que varia entre o silêncio obsequioso e o latido festivo: e é nessa armadilha que acabamos por cair.


Lá, caídos, quedos nessa solidão – ainda que haja, nesse instante, tantos outros em semelhante situação, mas cada um caído na sua (própria) armadilha, porque, mesmo estando lado a lado, permanecem incomunicáveis, impossibilitando assim que se forje, pelo desespero comum, uma extraordinária solidariedade) -, temos tempo para pensar; para, ironicamente, revolvermos nossas lembranças e, não nos esquecendo de que foram justamente elas que nos puseram nessa arapuca, revolvê-las é como cutucar uma matilha inteira, já de mau humor seus indivíduos, com o menor dos dedos.


Deixamo-nos, frequentemente, seduzir pela resposta submissa aos afagos (ou meros toques formais, sem declarada intenção de carinho sincero) feitos na lembrança, deduzindo, por uma ciência que prescinde dos requisitos lógicos de sua clássica formulação, que, tendo cedido a nossa aproximação, mostrando-se animalzinho de estimação, de uma fidelidade à prova até do nosso (não raro) desprezo, será sempre assim, a qualquer momento, bastando que, a nosso bel-prazer, acordemo-la, sem acordo prévio e consensual que nos autorize, com seu conhecimento e consentimento, agir desse modo, grata por a termos tocado, respondendo-nos com pulinhos que nos rodeiam.


A lembrança rouba (e isso a faz ladra) nosso tempo, impondo-nos o retrovisor, quando as surpresas só podem agora nos vir da frente. E morde: contudo, talvez como parte de seus ardis, maneira de nos manter atado a ela, apesar da “lembrança” das consequências disso, logo a seguir (as)sopra-nos.


E nós, carentes então, submissos, baixamos, junto com as orelhas, a guarda.


No entanto, o que para outros olhos surge como ininteligíveis mordidas, para nós, aqueles dentes acariciam – e seu tom afiado é dado justamente pela prática em nos “morder”. Do mesmo modo, igualmente impossível de entrar em outras cabeças, permitir que a lembrança nos roube, estimulando assim sua natureza (de) ladra, mesmo que mais tarde esse tempo nos faça falta, parece nos levar rapidamente (embora nos traga em semelhante velocidade) à experiência da eternidade, daquilo que não passa, por mais que certos latidos ouvidos, um dia, de tão perto, agora nos soe distantes.


CHICO VIVAS


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