quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

AMIZADE DE FAZ-DE-CONTA








Valendo-me do que a língua é capaz: não tenho um só amigo – um só, não!


Tenho mais de um amigo. Mais de dois. De três. De quatro. Mais de cinco amigos. Opa! há aí, aqui mesmo, uma deslavada mentira, ou então faço uso de uma matemática para lá de equivocada, o que é um contrassenso, quase um insulto a uma ciência que se gaba por ser tão exata. E se eu insistir em dizer que não, que não há erro crasso nessa minha conta, e, além disso, que também não houve mentira, a questão deixa o livro de matemática para se abeirar, no livro de ciências (mais) naturais, do capítulo da anatomia humana, das notas bizarras, ilustradas, sobre as (nossas) excentricidades: podendo “conter” nos dedos de uma única mão todos os amigos que tenho, que digo ter, e calculando-os ainda para mais de cinco, faço-me assim algo raro (talvez a única possibilidade que me seja dada de não ser tão comum) pela inusitada presença de seis dedos, ou mais, só não afirmando, de cara, exatamente, quantos dedos porque, afinal, quando o assunto são eles, os meus amigos, por mais sincero que deseje ser, fico, habitualmente, “cheio de dedos”: e quanto mais amigos, mais eu fico assim, cheio deles, de amigos e de dedos, sem que com isso eu esteja me esforçando para me tornar ainda mais bizarro.

Toda essa controvérsia, no entanto, é culpa da língua. Os amigos que tenho, conto-os nos dedos de uma única mão: e para que haveria de querer mais – quero dizer, dedos, já que, sabe todo aquele que já fez conta na ponta dos dedos, por menos versado em cálculos, que basta uma mão para que, com ela, se se desejar, se alcance, pelo menos em número, o infinito. Não importa, na verdade, quantos sejam os amigos – se um só que valha por muitos, embora sejam poucos os que se contentam com isso; se muitos amigos que não valem nada (belos amigos esses! sendo que é bem possível que só se os tolere assim, sem valor, justamente por serem tão...belos amigos); se muitos amigos, entre os quais há alguns que valem muito; se poucos amigos, todos igualmente “valorosos” (dizer deles que são “valiosos” faria com que eu parecesse um amigo demasiado “calculista”, mesmo que não tenha, nesse caso, descido – tão baixo – a um número exato); ou ainda se cinco amigos, facilmente identificáveis com cada um dos dedos da mão.

Nada disso importa, pois sejam quantos forem, conta-se-os na mão, contando-se apenas com cinco dedos: depois do quinto amigo, sem ordem de preferência ou de importância, volta-se para o primeiro dedo, contando aí o sexto, e, daí por diante, com só uma mão, pode-se ter, em amigos, um milhão, mesmo que não se os tenha sempre tão nela, assim, amigos à mão, ainda que sejam todos amigos de mão cheia, mesmo que se fique cheio de dedos em se ombrear com eles, temendo parecer, nessa comparação, um mínimo amigo, hesitando em lhe apertar a mão anelada (de “anelo”, e não por causa de um compromisso formal).

Enfim, é a língua, ela própria, a única culpada de tudo isso.

A ponta dos meus dedos – e isso está sempre na ponta da minha língua – anda gasta: e se assim ela está por eu ter muitos amigos ou por, embora admirador do(s) frio(s), não ser um calculista e, frequentemente, dos amigos perder a conta, é detalhe sem maior relevância. Só preciso mesmo me preocupar quando disser que “não tenho um único amigo”, sendo a língua, ainda por cima, inocente. Mas, enquanto puder pôr nela todas as (minhas) culpas, até me arrisco (será que por conta disso perderei um amigo?) a mostrar o dedo médio, apesar de ele não precisar de ajuda da língua para se expressar verbalmente, já (lhe) bastando sua expressividade plástica, como a querer dizer, por mais ambíguo que seja esse meu gesto, que o amigo em questão é grande, o máximo, como este dedo.


CHICO VIVAS

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

CURA ATIVA PARA PASSIVA IDADE







Tem-se a impressão, especialmente a têm os mais observadores, de que a publicidade, espécie de reluzente estandarte, sempre tremulando, do capitalismo, assim como este mesmo, não é dada a emotividades, embora, recorrentemente, faça uso disso, preferindo, no entanto, o pragmatismo: e é justamente em nome dele que se se faz passar até por um emotivo irrecuperável, se necessário for para se ganhar (ou se recuperar) mercado.


A propaganda dos curativos, desses autoadesivos, autocolantes, às vezes, ao custo de uns fios de cabelos arrancados, dirige-se, preferencialmente, ao público infantil, talvez na crença, algo infantil, ainda que baseada em confiáveis pesquisas, de que só as crianças precisam de um sopro sobre suas feridas – aí, na forma de um curativo virtual. Já não (tão) crianças, crê-se, sabemos nós, que um dia fomos uma delas, como lidar com os nossos machucados, sabendo que os sopros não aliviam a dor, podendo até mesmo, circunstancialmente, ao contrário, aumentá-la, além de que, se precisamos de um curativo, sabemos onde ir buscar o band aid.


Assim é que a publicidade, tentando desviar a atenção dos pequenos, concentrada, egoístas como são, por natureza ainda em formação, em sua própria dor, como se nada mais houvesse no mundo, nada que valha sua atenção, oferece ao mercado curativos decorados, coloridos, quase falantes, como se a cor, os desenhos tivessem algum poder anestésico, e a voz virtual lhes dissesse, como num caricioso sussurro maternal: pronto, o dodói já passou!


Assim é que se deixa de lado a necessidade de quem já cresceu, como se as feridas estivessem, para nós, na proporção inversa da nossa idade: pequenos, muitas delas, por não se saber ainda como se defender dos ataques naturais; crescidos, supondo que nos tornamos guerreiros invulneráveis, eis que as feridas diminuiriam. Talvez por isso percamos, com o passar do tempo, a capacidade de lidar com nossos ferimentos, a ponto de, quando um deles nos vem, sabermos onde está o band aid, mas, apesar do desejo, não sabermos mais como pedir a alguém que sopre nosso...dodói - e, quem sabe, essa ferida só precise mesmo de um sopro...de esperança.


Não conheço bem a indústria dos curativos, mas sei que são fabricados em tamanhos diversos, para situações variadas, havendo crianças que, pelos desenhos, pelas cores quase choram (como se estivessem sofrendo um ataque) por um band aid maior do que a necessidade de se cobrir um mero arranhão, quase invisível a olho nu; havendo, no entanto, os "crescidos" que, precisando de um curativo de grandes proporções, teimam, para não exibirem o tamanho de seus sofreres, em usar um mínimo band aid, incapaz de velar a ferida, revelando, contrariando um desejo pessoal, além dela, esse seu desejo de não dar a conhecer suas dores.


Obrigado pelo curativo! Ficará guardado, sempre à mão, para uma emergência. Porque a dor mais imediata ele já curou, sem que eu tenha precisado usá-lo: recebê-lo, por si só, já foi como um sopro num dos meus dodóis.


CHICO VIVAS

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

LAMBE-LAMBE PARA NÃO ESQUECER AS LAMBIDAS DA SAUDADE









Não vai, aqui, nenhuma História, e também não há qualquer sombra de Arte, embora o que por aqui vai (se) pintar, (a)pareça, em alguns instantes, algo sombreado.

Uma dessas pinturas que exigem, de cara, certa distância dos olhos para que se lhes entenda(?), para que se lhes perceba, já que se próximos demais, ou não afastados o suficiente esses tais olhos, o que se verá pode não passar de nada mais do que uma mancha, um borrão multicor, resultado da dissolução dos contornos familiares a certas figuras, como se seus limites, de uma hora para a outra, se rompessem, e as cores, então “aprisionadas” nas linhas do desenho, atendendo a leis mais conhecidas no (nosso) mundo natural, escapassem, e, na pressa, porque há tanto contidas, ansiando por liberdade (ou querendo apenas se salvar, através dessa estreita abertura), misturassem-se todas, num atropelo de arco-íris desorganizado.

As lembranças são assim, e não porque façam história – mesmo que o façam sem tanta arte, como se colassem retratos, ao acaso, num álbum improvisado, não atendendo à ordem cronológica dos fatos, nem “se lembrando” de lhes dar legendas que lhes identifiquem, acreditando, numa atitude francamente contraditória, que não se precisará dessas etiquetas para se dizer, com educação, de que é esse (retrato) – será de algum Renato: mas qual?), de quem é aquele rosto ali colado, calado, agora, sob uma proteção de plástico, nesse livro cartonado, de páginas originalmente em branco e que virão a ser “escritas” não com palavras, mas com memórias.

Ora, se se crê, firmemente, que se recordará sempre dessas faces, sem o auxílio prestimoso e manuscrito de um “fulano de tal”, ou de “em tal lugar”, “no dia tal”, para que, então, se colecionam essas fotografias, instantâneos de uma vida marcadamente fugaz? E as lembranças assim são porque requerem um olhar sobre elas, a certa distância: de muito perto, um rosto, por mais definido em detalhes dos quais nem mais se recordava, não passa, já, de pontos (de vista); com olhos além do indispensável, numa “comparação inversa” com um quadro impressionista, o retrato se torna a precisa fotografia de um subjetivo borrão.

Todo mistério de se cultivar saudades (porque é demasiado ingênuo, mesmo que se acredite sinceramente nisso, dizer que se prefere não cultivá-las, “matando-as” com uma constante e viva presença) está em saber seu exato lugar na (nossa) vida, de onde se possa contemplar a saudade, identificando-a num retrato nítido, sem o excesso de proximidade que desfaz o encanto, e sem o exagero das lonjuras que “desencanta” a saudade, fazendo-a tão-somente mais um dos nossos cotidianos esquecimentos.

Nessa vasta sala de saudades, somos, ao mesmo tempo, os olhos-espectadores e o quadro admirado, podendo ser que tal simultaneidade se desfaça, e ora sejamos a própria saudade vista (de que ponto?), ora sejamos os saudosos olhos apontados diretamente para um quadro, é preciso, nesse fenômeno ótico, não confundirmos o cansaço natural a que os olhos estão submetidos (por se os ter forçado muito em aproximações que não nos revelaram ou em afastamentos que tudo sempre nos esconderam) com uma saudade mais ou menos nítida. Os olhos que enxergam a saudada apenas copiam a forma, o desenho dos que, com maior ou com menor eficiência, sempre observam o presente. Esses olhos-de-agora, estejam já precocemente cansados, por terem antecipado saudades (quando rostos são ainda tão presentes) ou naturalmente gastos (sem que tenham experimentado as devidas saudades), só vêem quadros contemporâneos, mesmo que se deliciem com obras de arte passadas. Já os olhos-da-saudade se alimentam justamente do desgaste, da impossibilidade (ou, ao menos, de uma dificuldade tão extremada, que beira o impossível de acontecer) de todo retrato se conter, de não romper o tênue fio que lhe conforma, e a faz, assim, a saudade, encontrando tal ponto-de-fuga, desejando salvar-se como lembrança, confundir-se com uma “nítida mancha”.

Ainda que descolada a legenda, sabemos de quem se trata: é o retrato da própria saudade.



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