quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

ANDANÇAS-SOLO














“BOSTRICHUS TYPOGRAPHUS”...

Dito assim, quase não resta dúvida: é o mais puro latim. E soa a nome científico, só não se adivinhando ainda a que reino pertence: se ao vegetal ou ao animal, embora esse “tipógrafo” no nome nos remeta, imediatamente, ao ato de escrever (ou, ao menos, ao de compor o escrito), e isso tem estreita ligação, até mesmo primordial, com a pedra, o que, na sequência desses motivos encadeados, já nos leva a considerar, além dos outros dois, também um terceiro reino – o mineral.

Como, no entanto, esse mistério vai-se tornando “o bicho”, pronto, desvendemos, de uma vez, esse enigma: é ele mesmo! É um, mais um entre os tantos que habitam este mundo com três reinos bem definidos, entre os quais a apenas um, o mesmo do tal bicho, um inseto, pertencemos, mesmo que nos sintamos legítimos soberanos de todos os três, e mais, se houvesse.

O Bostrichus leva esse (sobre)nome de tipógrafo por causa de uma peculiaridade que o faz único: um jeito de andar tão marcante que, ao longo do tronco das árvores pelas(os) quais passeia, vai deixando um rastro facilmente confundível com letras, como se fossem caracteres tipográficos.

Pronto! Está decidido, e esta não foi uma decisão tomada intempestivamente, no calor da emoção de ter descoberto esse espécime, uma espécie de remoto escrito: trocaria minha humanidade banal, que sequer se grava por onde passo, mesmo quando piso fundo na ilusão de assim marcar presença, pela irracionalidade desse ser que homens instruídos, talvez com grau de doutor, afirmam ser-nos inferiores na escala evolutiva.

Mesmo sem poder comprovar sabedoria acadêmica, rebato suas afirmações, porque, com um bicho assim, capaz de “escrever” com seus próprios pés (sem ter sido levado a tal por insuficiência das mãos), e, sobretudo, por fazê-lo não de caso pensado, como se maquinasse a história, mas com a naturalidade de quem, ao acaso, passava por ali, distraidamente, quem somos nós?

Involuído ele? Comparo-o comigo (para evitar a descortesia de compará-lo, sem permissão, com outros), apesar de saber, e para tal não é preciso ser muito doutor, que não sou padrão no meu reino para essas comparações com os meus semelhantes; e comparando-nos, vejo, de cara, as minhas próprias desvantagens: para começo de conversa, se eu tivesse de escrever com meus pés, faria isso com a mesma inabilidade com que ando com minhas próprias pernas – errático, com destino incerto, algo trôpego, como se não pudesse respeitar os limites das margens -, e fazendo o que faço com as mãos (com as quais, admito, um tanto vaidoso, coisa, aliás, de gente que acho que chegou ao topo), não deixo, por onde passo, quaisquer caracteres que me sirvam como tipicidade.

Não sendo, como não sou, “tão evoluído” quanto esse inseto (que inveja, meu Deus!) do Bostrichus Typographus, eu ando...ando à procura de troncos vestidos com traje de passeio nos quais possa caminhar, e até, voltando atrás na tal escala da evolução, fazendo “macaquices” e assim, nesses troncos, deixando os pés para o ar, andando com as mãos, querendo a banana sem querer plantar sua semente: e nem assim eu alimento expectativas mais otimistas de vir a me tornar um homem marcante.

É desse jeito que vou vencendo as estradas, tão “à mão” que, se elas forem um desafio, diria que as venço à unha, unha que, por isso, fica, por tanto se agarrar às estradas, suja, como se trouxesse consigo as marcas dos caminhos percorridos e que há pouco chamei de (já) vencidos com o mesmo sentido e não porque eu sempre saia (do caminho) como o vitorioso da jornada.

O que o Bostrichus, nessas suas andanças por troncos diversos, deixa “escrito” pouco importa; talvez nem mesmo faça sentido para a nossa semântica essas suas “canetadas” em árvores à beira do (seu) caminho, desde que tomemos tais caracteres e queiramos assemelhá-los aos nossos, atribuindo a estes um caráter evoluído em relação àqueles, com o argumento de que não são apenas marcas aleatórias, mas, nossos, têm significado, enquanto que os do Typographus...

Assumo, agora, em nome da verdade, a defesa do pobre bichinho: se toda a questão é que ele escreve (só) por escrever, sem querer dar sentido preciso ao que faz, atendendo a sua natureza, se isso (o) faz inseto, então eu, o que é que eu sou?

Homem nenhum há de querer me ter como seu semelhante, já que me assemelho tanto ao Bostrichus, e o inseto, que deve também ter as suas vaidades (afinal, é ou não é um “escritor”?), será que aceitará que, sem que eu saia do mesmo reino, passe a habitar o alto do pódio em que ele já está ou será que ele, sem desejar concorrência tão feroz como a minha para esse “escrever em troncos” (sem, contudo, fazer, como ele, qualquer sentido), deixar-me-á de lado, “vegetando”, a ponto de ser chamado a mudar de lugar, migrando para outro reino?

Respostas só mesmo ele pode dar. Perguntas eu mesmo faço, homem que sou, involuído que permaneço. Memória(s) do que escreve ele não há de ter: lembranças de tudo que já “andei em troncos”, também eu não tenho, mas não me esqueço de que por ali já andei, mesmo que com essa virtualidade que, hoje, nos serve como desculpa para as distâncias.

E mesmo não sendo marcante, espero ter acabado de, de coração, ter “passado por cima” de ti, como um inseto inofensivo, no teu tronco, ainda que, poesia à parte, o melhor de ti, porque a evolução nos fez assim, esteja mais no alto, especialmente quando o coração se torna comum demais e "pensamos" em usar a cabeça.





quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

"GRACEJOS" PARA (HORAS) VAGAS PREENCHIDAS







São muitos, embora eu não os possa precisar (redundantemente, “com exatidão”), os que creem não ser preciso essa coisa de matemática, sabendo-se, os que a dominam mesmo que rudimentarmente, o quanto ela é “precisa”, ainda que assim por se basear num acordo tácito, contrato ao qual se adere sem se poder discutir suas cláusulas, o que faz com que todos, salvo os que deliberadamente querem incidir em erro, talvez num ato (pouco lógico, nada matemático) de rebeldia: diante de uma proposição que some 2+2, como se se ficasse irremediavelmente de quatro frente a essa operação, dá-se sempre a mesma resposta.


Buscar as razões do sucesso (de alguém) pode conduzir essa procura tanto para o instável terreno da sorte (o acaso é, nome por vezes usado em lugar da mesma sorte, uma probabilidade matemática), sobre o qual se quer andar, preferencialmente, afundando-se nessa fortuna (mais um nome para a sorte: sorte dela ter tantos nomes assim!) até a cabeça, espaço este classicamente reservado para as “exatidões” (mesmo que seja daí que também saiam as melhores fantasias), quanto, tal busca, qual barco que vai adiante não pelo seu próprio querer, mas pela capacidade do vento de in(su)flar suas velas, pode conduzir para a Graça divina – “terreno” este (se cabe aí tal palavra) em que só se constrói com a discricionária permissão Superior.


Alguém poderá ter sentido falta, aqui, do Trabalho, sem o qual não há sucesso possível, a menos que se o deixe inteiramente nas mãos de Deus ou ao bel-prazer dos humores da sorte. Há mesmo quem, com pompa de matemático ao elucidar complicada equação, mas com cara de quem a resolveu sem maiores dificuldades, afirme que só na ordem alfabética é que Sucesso vem antes do Trabalho.


Talvez se se somar Trabalho+Sorte+Vontade de Deus, podendo-se variar o segundo e terceiro termos dessa equação, dando-se, contudo, primazia ao deus do trabalho, chegue-se a um (bom) resultado, ou, pelo menos, conclua-se que, coisa que a matemática já desvendou, que é mesmo a reta o caminho mais curto entre dois pontos: e é assim que a curva, nessa história toda, ficou com má reputação.


O sucesso é, provavelmente, a soma das percepções alheias a respeito do desempenho (profissional, pessoal...) de alguém.


A sorte, com certeza, é o apelido mais mundano para o feio nome de batismo da Probabilidade Matemática.


A Graça divina é inapreensível ao homem, tão sem “razão” ela é que não cede sequer às graças que Lhe fazemos, tentando-) seduzir.


O trabalho é a oração mais perfeita que já coube na língua do homem: e o silêncio, por vezes, é, entre tantos árduos trabalhos, a mais longa e árdua oração, mesmo que isso não garanta a Graça, a sorte, o sucesso.


Que você tenha tudo. Que tenha toda (sorte)


domingo, 7 de novembro de 2010

UMA CADELA CHAMADA LEMBRANÇA








A lembrança, ladra contumaz do meu sossego, morde. E morde como um cão, sequer um que, aparentemente feroz ou, ao menos, pouco amistoso, dá sinais evidentes disso, fazendo com que não nos aproximemos dele(a) ou, desejosos, ainda que com os riscos conhecidos, de fazê-lo, façamo-lo cuidadosamente, prontos, como que de sobreaviso, alertas para uma emergência, para nos evadir ao primeiro rosnar, longe já quando, afinal, mostrar seus dentes, incisivamente caninos.


A lembrança, por vezes, exibe-se como que um bichinho abandonado, largado em qualquer canto com total desumanidade, sem dono que lhe garanta, mesmo que segundo sua própria e imprevisível vontade, o carinho necessário que justifique sua submissão, orelhas baixas, olhar de uma doçura quase mítica, e um sorriso que varia entre o silêncio obsequioso e o latido festivo: e é nessa armadilha que acabamos por cair.


Lá, caídos, quedos nessa solidão – ainda que haja, nesse instante, tantos outros em semelhante situação, mas cada um caído na sua (própria) armadilha, porque, mesmo estando lado a lado, permanecem incomunicáveis, impossibilitando assim que se forje, pelo desespero comum, uma extraordinária solidariedade) -, temos tempo para pensar; para, ironicamente, revolvermos nossas lembranças e, não nos esquecendo de que foram justamente elas que nos puseram nessa arapuca, revolvê-las é como cutucar uma matilha inteira, já de mau humor seus indivíduos, com o menor dos dedos.


Deixamo-nos, frequentemente, seduzir pela resposta submissa aos afagos (ou meros toques formais, sem declarada intenção de carinho sincero) feitos na lembrança, deduzindo, por uma ciência que prescinde dos requisitos lógicos de sua clássica formulação, que, tendo cedido a nossa aproximação, mostrando-se animalzinho de estimação, de uma fidelidade à prova até do nosso (não raro) desprezo, será sempre assim, a qualquer momento, bastando que, a nosso bel-prazer, acordemo-la, sem acordo prévio e consensual que nos autorize, com seu conhecimento e consentimento, agir desse modo, grata por a termos tocado, respondendo-nos com pulinhos que nos rodeiam.


A lembrança rouba (e isso a faz ladra) nosso tempo, impondo-nos o retrovisor, quando as surpresas só podem agora nos vir da frente. E morde: contudo, talvez como parte de seus ardis, maneira de nos manter atado a ela, apesar da “lembrança” das consequências disso, logo a seguir (as)sopra-nos.


E nós, carentes então, submissos, baixamos, junto com as orelhas, a guarda.


No entanto, o que para outros olhos surge como ininteligíveis mordidas, para nós, aqueles dentes acariciam – e seu tom afiado é dado justamente pela prática em nos “morder”. Do mesmo modo, igualmente impossível de entrar em outras cabeças, permitir que a lembrança nos roube, estimulando assim sua natureza (de) ladra, mesmo que mais tarde esse tempo nos faça falta, parece nos levar rapidamente (embora nos traga em semelhante velocidade) à experiência da eternidade, daquilo que não passa, por mais que certos latidos ouvidos, um dia, de tão perto, agora nos soe distantes.


CHICO VIVAS

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

TONS DE CHICO













Amigo, assim se canta na América, é coisa para se guardar no lado esquerdo do peito...de um Milton Nascimento. Mas, e os que já têm no próprio Milton um amigo, onde será (porque “Que Será?” é coisa de outro amigo do Milton, e eu não sou exatamente esse Chico) que guardam?



Falando nisso – “porque palavras são palavras e a gente nem percebe o que disse sem querer” –, e o guarda de trânsito, e que não o é desde seu nascimento, podendo se chamar, por coincidência, Milton, um que sequer guarde de memória qualquer canção de uma América “fantástica”, talvez cantarolada em baixo-saxão, ou qualquer canção do Chico, e que nem me tem, a mim, como seu amigo, ele guarda seus próprios amigos no peito daquele Nascimento – que o é desde que nasceu – ou será que ele tem seu próprio lugar (quem sabe se no seu coração) para guardá-los, um lugar onde guarda não haja dizendo que é da lei se manter à esquerda, batendo no peito, ou às direitas, fincando pé nas regras concertadas?

Há quem ache providencial ter num guarda assim, em trânsito, um amigo, menos pensando em sua proteção em dias de muito sol na cabeça ou quando a chuva cai (e não uma chuva de amigos do peito), e bem mais para o caso de parar seu carro em local proibido, acreditando que por ser seu amigo (nessa hora, amigo daqui, do peito, ainda que acabe, mal-treinado em sinceridade, batendo do lado direito, portando, às avessas do coração, seja porque não conhece sua própria anatomia ou porque amigo assim só se guarda mesmo para casos de necessidade legal, não importando de que lado então se esteja), o guarda não andará, como se espera, às direitas, só para dar passagem a esse amigo, companheiros passageiros que nem sabem seu nome de cor, capazes que são de nos chamar de Zé, como se chama a um suposto amigo qualquer, não lembrando, se é que um dia deu ouvidos a isso, que nos chamamos Chico, nome tão comum como qualquer Zé, ou que somos, sem muitas nuanças, um Milton que, como outros, venham estes a ser guardas ou não, hão de ter ouvido lá pelos idos do seu nascimento uma canção...de ninar.

Mas, voltando(-nos) ao guarda, fazendo, aqui, retorno em local permitido, ele pode até fazer cara de poucos amigos diante dos que, na verdade, não o são (seus), para evitar que estes lhe chamem, com cara de quem fala com um velho amigo, de Zé (e vai que o guarda é mesmo um tanto José?!), ou à frente de um (re)conhecido amigo mantém sua postura, para deixar claro que, apesar de reconhecê-lo (sem precisar fechar os olhos para isso) no peito, no lado convencionado, como uma universal placa de trânsito, no esquerdo, tem de agir direito, como manda o figurino de guarda: mas vai que justamente nesse instante do encontro entre esses dois amigos – um tendo cometido uma falta e esperando compreensão do amigo-guarda, o outro guardando de memória todas as leis de trânsito –, compreendendo a expressão do amigo, porém, tendo de agir como desentendido, e vai ainda que no rádio do carro flagrado em falta esteja tocando, entre as muitas canções que se fazem na América, aquela que, como se abrisse o peito com notas bem “cantadas”, revela onde se guardam os amigos, vai que um dos dois, guarda (dos seus deveres) e contutor-em-erro (no seu autoatribuído legítimo direito de virar às avessas um amigo), se chame Milton, e que ambos se conheçam desde o nascimento, tendo até partilhado a mesma canção de ninar, adormecendo seguros de que mesmo assim, sem verem um palmo adiante, não haveria “choque”...

...E vai, e vem, e a canção toca e chega ao fim como se fosse... E lá vem outra (Que Será?), como se o mundo fosse um disco sem fim, não se sabendo ao certo quantas voltas ele pode dar...
Não será preciso abrir o peito do guarda (apesar dessa sua atividade estressante, atacado de todos os jeitos) para se descobrir o trânsito dos amigos no coração de um homem, independentemente do nome, do renome, do codinome (Beija-flor, meus amigos, já é outra ave nesta minha cantilena): amigos sempre têm trânsito livre – o que não os autoriza a infringirem as lei próprias a essa “estrada”.

Amigos têm direito garantido à compreensão (mútua), desde que isso não seja um pedido para se fechar os olhos (já não temos aquela confiança infantil na ausência de choques). Amigos, mesmo que tenham poucos de seus, fazem cara de muitos amigos, se precisamos da ilusão da quantidade e,ainda que tenham para si uma porção incontável deles, podem também fazer cara de poucos amigos, talvez até de apenas um, se tudo o que desejamos é a ilusão da unidade de uma cara feliz.

Guarda contigo... mesmo que já não recordes toda a letra dessa canção.

CHICO VIVAS

terça-feira, 12 de outubro de 2010

APERTE PARA CONFIRMAR...OU NÃO

O VOTO

OU

A GALINHA DOS OVOS DE OURO






Devagar com essa urna porque, pelo que nos querem fazer acreditar, nossa democracia é de um barro ainda mais instável do que aquele que – à parte o shakespeariano Próspero que afirmava ser o sonho a matéria de que somos feitos – nos fez, envoltos em Seu hálito divino, homens...e mulheres.


É pura mistificação essa ideia de que não se pode, pela importância que se lhe atribui e pelo intervalo entre um e outro, desperdiçar o (próprio) voto. Mesmo que pareça pouco razoável perdê-lo (e para sempre, ao menos até a próxima oportunidade) propositadamente, isso é uma opção de quem – santa Democracia quebradiça em sua cerâmica mal-cozida! -, compulsoriamente, tem de votar: não tendo a alternativa de não o fazer, se assim o desejar, que se o desperdice, se quiser.


Se há consequência para ato assim? Há; como há, seguindo determinada lei – e da qual não conseguimos escapar, mesmo que nos insurjamos contra ela com todas as nossas forças, salvo algum “milagre” -, consequência para todo e qualquer ato, sabendo-se mesmo que houve até para um ato de Deus, supostamente acima de todas as leis, ao brincar, como criança ainda em precário desenvolvimento estético-motor, com a deliciosa plasticidade do barro: eis-nos aqui a não (me) deixar mentir, embora a própria mentira seja uma das tais consequências do ato e não menos uma arma da democracia.


Soa a chantagem atraente – há os que a aceitam, desde que assim, embalada com papel incomum, raro nas mãos de qualquer um e que seja um diferencial, símbolo da exclusividade de uma “classe” de homens...e mulheres -, se dizer que, perdendo-se o voto agora, só daqui a tantos anos para se consertar os efeitos de um possível erro: se, na ponta do lápis, é assim mesmo, que andor alquebrado é esse que se tem de carregar até a próxima festa do padroeiro, sem o direito de, descobrindo o santo em falso, parar e demovê-lo das alturas, garantindo-lhe o direito de defesa? Ao contrário, do jeito que a procissão foi formada (alguns dirão que justamente assim já como consequência dos votos errados, abrindo espaço, sem trocadilho filosófico-reprodutivo, para que o ovo e a galinha prolonguem a eterna querela sobre o privilégio(!) nas primícias mundanas), garante-se, mesmo com toda a obrigatoriedade, assento acolchoado na plataforma que se sustenta nos ombros dos fieis, contando-se com o esquecimento entre os calendários.


Outro ídolo que se quebra facilmente, a memória não é mais um instrumento de cidadania, sendo o esquecimento, apesar da toxicidade dos seus eflúvios, o cano pelo qual escapa a pressão diária: de ser cidadão consciente, de não poder não sê-lo, de ter de carregar andores de obrigações “legais” por andares sem conta nesse alto edifício sem elevador; enfim, de jamais errar...


Numa democracia em que há o certo e o errado, há algo errado: para muitos, “certamente”, o errado aqui sou eu, ao falar assim, desprezando a Ética. Errado está não porque o erro foi parar aí, mas porque o autonomeado certo, como um deus sem misericórdia, ameaça, com sua mão forte – retórica que seja, mas nem por isso menos pesada -, o barro comum: de um lado, prometendo-lhe, se andar na linha (certa) a continuidade de um paraíso (que se admite assim, sem contestações), e de outro, tendo em vista justamente o “outro lado”, o inferno – que, como se sabe, é sempre...o outro.

CHICO VIVAS

O QUE (TE) DIZER?






Queria mesmo te dar uma “palavrinha”, mas (será que só as minhas?) as palavras têm todas o seu próprio lugar: são palavras ou de amor ou são palavras inchadas de um amor apodrecido, embora suculento ainda na aparência “jovial”, porém, ao serem “exprimidas”, geram um suco ralo, ainda que potente, de ódio, de mágoas em cachos; são palavras de consolo que, quando ditas (ou escritas) por dizer, em nada consolam a quem isso deveriam fazer, consolando tão-somente, às vezes, a consciência de quem as diz (ou as escreve) e que, quando sinceramente vividas, fazem até esquecer o motivo da dor; são também palavras de ânimo ditas, não raramente, sem a preocupação de que quem as ouvirá (ou venha a lê-las) esteja mais precisando de um silêncio animador. Não finda a lista, são palavras calmas – ditas sem pausas restauradoras; são palavras de despedida que não têm coragem de dizer adeus logo de cara; são palavras de boas-vindas porque se é covarde então para fazer uma festa com balões coloridos tão ao gosto de uma infância agora envergonhada, com alto-falante, banda de música vestida como se os músicos fossem soldadinhos de chumbo, e torcida organizada: tudo isso em público; são palavras que acompanham eventualmente rosas, mas torcendo-se para que sejam vistos os espinhos, talvez por neles se concentrarem, tacitamente (nem por isso de modo menos agudo), as palavras que realmente se quer dizer, embora se tenha dito outras, róseas na aparência floral, sendo mais profundos os espinhos-em-palavras do que os naturais, agarrados ao talo. Rol que parece não querer acabar mais, são palavras compradas prontas, sob medida para qualquer corpo, deixando ao próprio corpo a responsabilidade de se ajustar a elas, e não talhadas sobre esse mesmo corpo, preservando a individualidade de cada um(a): e tecer palavras diretamente sobre o corpo (mesmo que num corpo “comprado”) é prazer já tão desusado quanto a arte da alfaiataria com exclusividade; são palavras sem fim...são palavras para tudo; palavras já com seu definido lugar.

Mas, eu só queria te dar algumas palavrinhas – e, salvo pelo hábito, nem sei dizer o porquê disso.

E esse não saber faz delas umas palavras fora do lugar, quem sabe mesmo se palavras sem lugar algum.

Se é assim, onde encontrar palavrinhas para te dar? Palavrinhas que não digam nada, e por isso mais me revelem; palavras que pareçam dizer tudo sem se esqueceram de nada – e isso nada mais é que usar de artificio antigo para falar sem se (sem me) comprometer.

Poderia comprá-las, mas sou velho demais; de um tempo em que se faziam as roupas num alfaiate que tirava as (minhas) medidas (pequenas medidas, muitas das quais, com o tempo, não abandonaram a pequenez).

Sendo assim, arrisco-me a eu mesmo cortá-las, sob medida, desse meu jeito desmesurado, sobre teu corpo, correndo o risco (e correndo, se ele realmente ocorrer) de te ferir, de ferir o corpo...da palavra nessa minha tentativa de costurá-las com exclusivo destino, valendo-me das linhas sem conta que seguem enroladas em meus dedos, a ponto de apagarem as digitais.

Como anestesia, antes dessa operação arriscada, poderia te dar palavras tão doces que haveriam de entorpecer teu paladar, ou amargas demais, com a mesma consequência “saborosa”. Prefiro, no entanto, fazer tudo mesmo a sangue-frio, embora o teu, no corpo sobre o qual as palavras serão cortadas, deva estar já bem quente, na iminência de algum erro a ser cometido por estas minhas mãos inábeis.

Deixemos de terrorismo! Digamos logo que o pior já passou. As palavras (sentiste-as?) já foram talhadas, mas não ficam sob medida. É que para se ajustarem a ti elas precisarão, a todo instante, ser re-cortadas.

Tudo o que consegui, de verdade, foi tramar umas linhas e costurar algumas frases fora do seu lugar, só para te dar uma(s) palavrinha(s).

Não servem para nada. E a carapuça me cabe, caso digas, depois de tudo isso aqui, que eu é que não sirvo para nada – o que, sejamos justos, não é a mais pura verdade. Eu sirvo para te lembrar, mesmo que isso esteja já tão fora de moda: lembrar, claro, pois o “te” ainda me deixa...sem palavras.


CHICO VIVAS

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

A ESCOLHA É LÓGICA



Na minha infância, coisa que já vai longe no tempo, não era raro, considerando que então as mudanças não andavam na velocidade contemporânea, ver nas casas (nas sinceramente mais piedosas e naquelas que, com hipocrisia bíblica e atemporal, levavam em conta as aparências) um genuflexório: o que, a olhos pequenos, parecia uma estranha cadeira, com seu “assento” demasiadamente baixo, mesmo para uma criança, e um encosto hiperdimensionado, visto assim até que esses mesmos olhos aprendessem que o tal assento era para os joelhos, com acolchoado diretamente proporcional à necessidade de cada um, autoimposta ou vinda de terceiro com essa legitimidade canônica, à custa das rótulas, de purgar seus pecados. Hoje, facilmente, se enxergaria aí – apesar de ser improvável que os olhos ainda recaiam sobre peça assim – um instrumento (a mais) de tortura, além de um exemplo condenável de masoquismo anacrônico.


Embora a Política tenha uma ciência ad hoc, parece se inscrever mais no rol das paixões humanas – entre as grandes. E alguns se valem justamente da (falta de) lógica que se costuma associar às paixões como prévia prova de inocência, se flagrados no delito de fecharem os olhos a certa evidências, seja em nome do governo de ocasião ou da oposição da vez, intimamente até se justificando (quando o olhar próprio é mais crítico e inclemente que os temidos alheios) com um projeto de longo prazo em que, com maquiavelismo sob medida, os fins assumem sua devida supremacia.


Isso tudo me faz lembrar uma frase, farto delas como ele é, farto dele como jamais fico, de Michel de Montaigne – ele próprio tendo experimentado, sem paixão, reconhecendo-se sem talento natural para isso, a vida política, por duas vezes prefeito de Bordéus: “CABE AO MEU JOELHO DOBRAR-SE, MAS NÃO À MINHA INTELIGÊNCIA CURVAR-SE”.


Chega a ser constrangedor observar como algumas (boas) cabeças – deixai as paixões para o peito, ó cabeças! – insistem em que dobrar os joelhos, isso sim é que é indigna subserviência de um homem: seja a um outro homem ou a um deus qualquer; no entanto, aceitam, com passividade que talvez lhes dê a sensação de carícia num idealismo que tem vergonha de se mostrar em todo seu romantismo, que lhes dobrem a inteligência: seja à direita ou à esquerda – embora isso, hoje, já não faça o menor...”sentido”.


A paixão, que tem seu lugar na vida do homem, é quase sempre uma responsabilidade pessoal, mesmo que envolva mais alguém, já que se apaixonar por si próprio é, entre todas as ilogicidades a que temos direito, a mais sem graça. A política, sobretudo, ainda que não prescinda do ato individual, sendo este uma necessidade formal, é coletivo.


A visão, a um sinal, de uma multidão se ajoelhando, em sincronia de genuflexões carrega alguma beleza plástica, nem que seja por se testemunhar esse raro momento de união, tão apaixonante como a paixão que evola com um grito de gol em estádio cheio, à parte a feiura de qualquer ato, mesmo que em estado de ereta confiança, realizado, compulsoriamente, contra a própria vontade. Deixar a inteligência se dobrar a um dado sinal, sem ponderações equilibradas, é abrir mão da lógica: aquela que garante que sejamos apaixonadamente(!) cidadãos.


CHICO VIVAS

domingo, 19 de setembro de 2010

SÓ ME RESTA DIZER...


Se é para falar, é melhor dizer logo, sem adiar, tomada já a decisão, como parece que está, evitando digressões que só atrasam o que, mais cedo ou mais tarde, deverá ser dito: então, que seja o mais cedo possível, sob o risco conhecido de, a cada linha entre a intenção de dizer e o dito afinal, aumentando assim certa ansiedade, quando, enfim, não havendo mais alternativa de se postergar o fato que se toma como consumado, se disser, depare-se com uma simples obviedade, causando, ao mesmo tempo, decepção (diante de tão elevadas expectativas) e, o que deve ser pior, frustração, com aquela incômoda sensação de se ter embarcado numa canoa furada, e não por não se saber, de antemão, dos furos dessa história, até se os percebendo debaixo de disfarces amadores, vendo-se agora na iminência de se testemunhar, sendo a própria vítima disso, uma porção de tempo naufragar.

É por isso que, conhecedor desses truques – apesar de muito usados, até por prestidigitadores sem grande sensibilidade na ponta dos dedos, sem o requerido “tato” para ilusões assim -, não posso e não devo, como um fabricante artesanal de embutidos, usando, portanto, da habilidade adquirida com as mãos, ir enchendo isto aqui com o desnecessário, por mais que um “embutido” só com essencialidades não tenha lá um gosto de deixar cheia de água a boca.

Antes, porém, de dizer a que vim, deixe-me falar desse saber (tanto no que há de transitivo direto, quanto indireto nesse verbo que, alguns não “sabem”, não é somente um conhecimento formal, mas que tem “sabor” próprio), um saber algo infantil que abre um conflito entre, tendo à mão, com certa literalidade doce, uma gostosura finita, devorar tudo de uma vez, perdoável então essa gulodice nos anos poucos, e, ao contrário, ir adiando, com lambidas ou mordidas demasiadamente comedidas para a natural falta de temperança de uma criança, o prazer de encher a boca, alimentando a fantasia (que não enche barriga: aprende-se isso quando já não se é mais (tão) criança) de que, degustando aos poucos, transformaremos, como num passe de mágica, o que tem fim determinado num prazer sem data para terminar.

Ainda saboreio essa (tua) lembrança, apesar de, ironicamente, ser uma que tem por base a infância deixada para trás: e a cada recordação, ela recua ainda mais. Se é verdade que, como num círculo, um dia, os pontos tão distantes se (re)aproximam, eis uma (boa?) justificativa para que eu, em lugar de morder essa lembrança e saboreá-la, e p(r)onto, insista em lambê-la, controlando ao máximo o ímpeto de devorá-la por inteiro, tentando, inutilmente, estender essa corda para além do seu limite: e sei que para se tirar o som de uma corda é necessário que ela esteja bem esticada; no entanto, se assim exageradamente, rompe-se todo o propósito.

Criança ainda gritando em mim, naquele desespero mimado de quem quer porque quer, mesmo já tendo ouvido ser isso impossível, cala-me fundo a intenção de não adiar mais o que tenho – que sempre tive, desde o início – a dizer, mesmo que, claro está, tenha, mais uma vez, criando expectativas, frustrado-as com esta óbvia conclusão: MUITO OBRIGADO!

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

NÃO “RETIRE” O QUE EU DIGO









Falso cognato, dada essa nossa pressa habitual que faz com que, mesmo conhecendo as armadilhas ocultas de um ato assim, levados a isso, no entanto, pela dita falta de tempo, nos deixamos seduzir pela aparência das coisas (ou, no caso, pela aparência da própria palavra), primeira impressão sempre invocada, “(to) retire” não é uma retirada completa, mas um aposentar-se que trai sim, voluntária ou compulsoriamente, o retirar-se, ainda que hoje recaiam sobre isso tantos olhos condenadores, como se não admitissem a necessidade, física ou emocional (quando não as duas), de se se apartar da rotina de toda uma vida, embora já houvesse vida (por imperativo biológico) antes mesmo do trabalho, com seus contados tempos de serviço, e ainda haja depois.
E para aqueles, com olhos arregalados para mim, que logo hão de intervir para dizerem que essa tal quebra de rotina, por continuada a partir de então, não demora para se constituir numa outra rotina, com a desvantagem de que agora se tem tempo de sobra para se pensar na própria rotina, o que, em meio a um turbilhão de atividades rotineiras, não costumava sobrar antes, a esses, eu (lhes) digo, do alto da minha baixa estatura: o que, afinal, é a rotina? Basta que repitamos uma mesma tarefa em busca de a dominarmos, tomados pela angústia de ainda não termos em nossas mãos todos os seus mistérios, para que já estejamos a um passo de nos tornarmos a rotina em pessoa.
Talvez haja um peso simbólico (mas “sentido” na pela, em geral, a essa altura, sem a mesma elasticidade juvenil) sobre a “retirada”, sobre uma aposentadoria que deveria ser (remuneração à parte, já que essa é uma seara demasiado espinhosa) o coroamento de uma vida ativa, reconhecendo-se o valor de se estar, longe do cotidiano de labores vários, consigo próprio, mesmo que essa reflexão não demora para se transmutar numa rotina nova: mas aí já se está acostumado, achando-se mesmo mais seguro viver sem as surpresas para as quais não se tem resposta, ou, tendo-a, não se pode dá-la, entre as quais, a disposição para um eventual chamado aventureiro.
Não são todos que podem se “retirar”, oficialmente, no tempo certo, sem viver essa “oficiosidade” injusta e que não atende ao apelo do corpo por uma parada terapêutica, sob o risco iminente de o corpo, ele mesmo, parar, movido como é pela fome, e esta pela remuneração, não raro, de fome, trocadilho ainda mais injusto quando se aceita essa remuneração por causa dela, da fome que não dá trégua, sendo a “rotina”, satisfeita ou não, mais antiga na nossa vida: quem pode, sem temor de agora passar a cultivar uma egolatria algo anacrônica, que se dedique, com todo seu tempo, a si mesmo, ainda que isso signifique uma dedicação altruísta por quem, com fomes diversas, mal pode pensar...e menos ainda em pensar em parar de trabalhar.
“Retire”, no inglês, nossa língua-madrasta (por vezes, mais carinhosa que nossa própria “mãe”), pode ser entendido como um “retroceder”, esse temido, quando jovens, passo-atrás, época em que, curiosamente, temos tanto tempo para retomarmos o caminho, se decidirmos dar uma ré. E, com o que o tempo faz a olhos vistos com nossa visão, dar um passo atrás pode implicar em se ver a vida de outra maneira, eventualmente com mais “clareza”, ainda que isso continue nos angustiando.

CHICO VIVAS

quinta-feira, 22 de julho de 2010

DEUS END








Quando um cinema fecha, Deus dá gargalhadas – e não qualquer (porque são muitos, especialmente os autoproclamados assim) deus do cinema, mas Aquele mesmo que, de tão-poderoso, perfeito em Sua própria definição, soa a personagem de ficção, a coisa de cinema mesmo. E se em seu lugar (e há certos Cinemas que mereciam que a “Ele” se associassem sempre letras maiúsculas) nasce uma nova velha igreja, justamente com o argumento, um dos mais velhos deste mundo (de meu Deus), de se louvá-Lo, aí é que as risadas dobram de tamanho, quase parecendo, aos mais descuidados, uma trovoada sem par.



E é assim porque Deus, tão ingênuo que criou o mundo, sendo a nossa criação o máximo de Sua ingenuidade, na crença de que nos contentaríamos, para sempre, em sermos somente Sua semelhança, imagina que tudo aquilo não passa de uma piada, de uma já repetida, espécie de clichê indispensável em filmes do gênero, como a inevitável casca de banana no meio do caminho que, desprezada um dia por ser óbvia demais, ressurgiu como um clássico eterno, quem sabe se coisa do diabo em dia inspirado, porque não passa pela cabeça divina que alguém queira trocar um cinema, que também tem lá seus “fiéis”, por uma assembleia de Deus.



Logo, no entanto, Ele acaba caindo (gerúndio impróprio para um deus) na real, percebendo o quando a comédia, levada ao seu extremo, perigosamente se aproxima do trágico. Chorar não fica bem à face de Deus: se Ele não nos der o (bom) exemplo, como suportaremos levar adiante o filme da nossa vida, com o peso de sermos, ao mesmo tempo, autores, encenadores, diretores, produtores, atores, contra-regras, bilheteiros e pipoqueiros?



Mas, transformar, num ato de vingança, que não deve agradar a Deus, os cinemas em novas igrejas não parece ser solução: logo teríamos, em vez de espectadores, com direito a ir e vir, crédulos acorrentados a ideia de que deles depende a sobrevivência do mundo (do cinema): e, pensando bem, coisa que fazemos melhor do que Deus, esse Cinema é coisa do passado, sendo que, muitas vezes, aquilo que o do presente nos oferece de melhor é o querer sair de casa, desse nosso mundinho que recriamos a todo instante, enchendo-o (como se isso fosse sinônimo de inspirada criação) de possibilidades que não nos tiram de casa, a ponto de alguns só conhecerem certas paisagens, com mar ao fundo, nos limites do home theater: e gente, quando lhes aparece pela frente, tomam-na como coadjuvantes que, sabe-se lá por que encanto demoníaco, escapou da ficção.



terça-feira, 29 de junho de 2010

FERMEZ LA BOUCHE, CITOYEN!


Não tenho, decididamente, nada de herói(co). Num mundo que vive, sempre ela à espreita, com a ameaça de autoritarismo(s), quando não já nesse estado, embora sob disfarces democráticos ou legalistas, não é nada prudente me confiar qualquer segredo, uma informação preciosa: aos primeiros avanços – tal qual um adulto mascarado indo em direção a uma criança, ao menos uma que ainda não esteja anestesiada para os sustos pelos medos consumidos em série(s) -, abro logo o jogo e conto tudo. Só de imaginar pontas de cigarro, devidamente acesas, palitos afiados querendo contato carnal com a sensibilidade do que se guarda sob as unhas, ou uma eletricidade (que não seja o lugar-comum com o qual se expressam desejos insatisfeitos) percorrendo minha intimidade fisiológico-sexual, passo, quinta-coluna, para o lado de lá.


O mundo já conheceu tempos heroicos – e quase todos eles acompanhados do terror: no caso da Revolução Francesa, o próprio Terror, institucionalizado. E a arte, que deve passar à margem do jornalismo, do meramente factual (tanto quanto não se espera deste subjetivismos estéticos), sempre presente, registra, ao seu modo, os avanços e recuos da (nossa) humanidade, não raro, fazendo-se coadjuvante de um espetáculo no qual cede, sem cerimônia, sua primazia à ideologia.


Não é História: é arte. É História da arte: num dos seus mais famosos trabalhos, Jacques-Louis David, queridinho da revolução, retrata, literalmente (o que, em geral, salvo nos grandes talentos, empobrece a obra), a morte do cidadão Marat, apunhalado, e não pelas costas, pela fanática revolucionária Charlotte Corday que, se valendo da sedução ingênua de provinciana patriótica, entra no banheiro (salle des bains) de Marat e o golpeia. Antes, faz-se anunciar por um bilhete: e sua leitura, ainda na banheira, é o motivo da própria pintura de David. Diz ele (o bilhete):


“13 de julho de 1793

Marianne Chalotte Corday ao cidadão Marat:

Basta que eu esteja infeliz para ter direito a vossa benevolência”.


Tudo isto aqui está longe de ser arte. E, provavelmente, não te flagro na banheira. Violento que não sou, não trago comigo, camuflada em palavras, um punhal afiado. Mas, mesmo sem estar especialmente infeliz, conto com tua benevolência.


Acaba se surgir – para espanto dos que acreditavam mortos os movimentos (co)ordenados de massa, já ela integrada, pelos números, à nova classe média, que sequer se importa, suscetível que não é a isso, em ser designada por letras que não estão no começo do alfabeto – um novo cidadão: o cidadão-hashtag.


Agora, basta passar adiante, numa rede social, qualquer besteira com palavra de ordem contra o que se insiste ainda (coisa mais antiga!) em se chamar de “sistema” (utilizando-se de um, ainda que o “marginal” Linux), sem se perceber usuário, muitas vezes já levado ao vício do consumo continuado, dele próprio, ou fazendo de conta que, novo revolucionário romântico, como tantos outros no passado, se vale do sistema para destruir ele próprio, sendo mais honesto se agisse como um Tancredi pragmático (sem, certamente, o chame ainda juvenil de um Allain Dellon no filme de Visconti) explicando ao seu tio, o príncipe-Leopardo, porque, embora nobre, se bandeara para o lado do exército republicano de Garibaldi, que queria, claro, aparentemente, acabar com as regalias da nobreza, ainda que numa Itália dividida e empobrecida: Plus ça change, plus c’est la même chose”.

A essa altura, sem ambicionar os trend topics, já ouço um “cala a boca”. E se eu fosse mais cotidiano do que já sou, talvez também alvo de uma campanha (bem-sucedida, certamente) de “um dia sem...”.


Ficar um dia, dois dias, três, todos os dias sem televisão (uma em particular, ou todas) não deveria ser uma obrigação (cidadã?) autoimposta. Ninguém, salvo se isso se faz rigorosamente necessário, procura um hospital, não lhe passando pela cabeça entrar num só porque não tem o que fazer. Por que, então, ficar sem (ver) televisão, seja qual for ela, não pode ser um ato natural, resultado de aspirações que não encontram ali sua satisfação, a não ser que se guarde, com todo direito, em sua privacidade, gostos que, publicamente, não (se) pode exibir, porque isso seria estar se integrando demais ao...sistema.


Fazer o quê, sem TV?


Ler, ora!


Já fui um leitor compulsivo. Hoje, digo(-me), talvez como um autoengano prestigiado, que me tornei mais seletivo, embora tal seleção possa estar relacionada ao tempo e a um certo enfado com tudo, inclusive com os livros, que vem também com o próprio tempo.


“Ao cabo de examinar bem, depois de tanto estudo

de filosofia, e leis, e medicina, e tudo

até teologia...encontro-me como antes;

em nada me risquei do rol dos ignorantes.

(...)Mas, como te suplantar fatal credulidade?

Que bens reais lucrei? Gozo eu felicidade?

Ah! nem a de iludir-me e crer-me sábio.

Sei que finjo espalhar luz, e nunca a espalharei

que dos maus faça bons, ou torne os bons melhores;

antes faço dos bons maus, e os maus ainda piores.

Lucro, sequer, eu próprio? Ambiciono opulência,

e vivo pobre, quase à beira da indigência.

Cobiço distinguir-me, enobrecer-me e vou-me

com a vil plebe, à espera em vão de um nome”.

[GOETHE, Fausto. Cena I, ato 1]


Não defendo a leitura como a salvação da pátria. Não acredito que uma nação de leitores seria uma nação com povo (mais) feliz. Até porque, para mim, os bons livros, antes de solucionarem nossos problemas (salvo os indispensáveis manuais de sobrevivência na selva da vida eletrônica, e mesmo assim só os “legíveis”), são os que nos acrescentam mais um, ainda que a experiência (social ou particularmente espiritual, não necessariamente religiosa, vinda inclusive das(s) leitura(s)) possa nos dar instrumentos para atuar diretamente em sua solução.


Se, de uma hora para outra, este país, sabidamente com baixo percentual de leitura, se comparado a sua população total, se tornasse um país de leitores, a curto prazo, com chances consideráveis de isso se estender a longo, as mesmas listas de baboseiras mais vendidas continuariam quase imutáveis, só que com vendas exponencialmente multiplicadas.


“Eu, na arte de enganar, não sou dos piores;

hoje, porém, confesso, estou assustado.

Não anda o povo afeito a mãos de mestre,

mas lê, lê muito; um ler que mete medo”.

[GOETHE, Fausto. Diálogo Preliminar]


Quem sabe ir ao teatro para ver, com as exceções de praxe, “comédias” (só rindo!) com flagrante inspiração sexista, interpretadas(?) por uma plêiade de diplomados em caras e bocas, ainda com cara de pau suficiente para chamar a atenção para a “crítica social” que fazem.


Fugindo das redes de TV, cai-se noutra. E nesta, dando-se crédito a estatísticas internacionais, com destaque para os navegantes nativos, é-se peixinho nas malhas (peixes nada ingênuos para se deixarem fisgar por tubarões imorais) da pornografia – honesta, quando não esconde o que é -, das redes sociais, não raro, explicitamente ou não, canais de difusão pornográfica, ou nas páginas de celebridades, igualmente pornográficas, mesmo que não negociem “por partes”, valendo, no entanto, a rubrica pelo conjunto da obra.


Que cada um faça o que quiser: não é essa a máxima da liberdade? Ainda que alguns, temerosos, acrescentem um “desde que não invada o espaço alheio”.


Então, que, querendo-se isso, se dê o (próprio: o alheio não vale) sangue pela pátria, embora eu considere atitude mais cidadã doá-lo um banco especializado!


Que não se derrame, se assim se quiser, uma só gota pela pátria – como se os impostos que nos exaurem não fossem, qual sangria desatada, hemorragia incontrolável!


Que se desligue a TV por um dia, no geral ou particularmente uma: e ninguém tem nada a ver – liberdade, liberdade! – se, durante esse mesmo dia, se a ligar, diversas vezes, só para “ver”, desligada então, como certa TV está, se estiver (o que só se saberá se se a ligar), repercutindo um dia sem ela própria!


Que não se tenha pudor de se assistir à TV o dia todo, se se puder, se se aguentar, mesmo que, com o direito de ser (será?) esnobe, diga-se que se prefere os canais por assinatura (a caminho de se tornarem, entre todos, os mais “populares”), tanto quanto não se tem pudor em se desejar (e satisfazer tal desejo) uma TV com tela a perder de vista e paga em prestações de infinitas polegadas!


Que, livres cidadãos, sem perderem tempo em me por no topo da lista, disparem contra mim um sonoro (em caixa-alta) CALA A BOCA! Eu, de minha parte, valendo-me dessa mesma liberdade de expressão, pressuposto de uma democracia, mesmo correndo o risco de assim exibir um viés autoritário (vítima ou algoz?), além de dar, eventualmente, provas incontestes de que estou sendo (bem?) pago pelo sistema, com a mesma ênfase, ainda que hashtag solitária, devolvo-lhes, cidadãos: CALA A BOCA, Ô!...


Não é assim, afinal, que hoje se expressam os #NOVOS_CIDADÃOS?!



CHICO VIVAS


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