quinta-feira, 21 de abril de 2011

LAMBE-LAMBE PARA NÃO ESQUECER AS LAMBIDAS DA SAUDADE





Não vai, aqui, nenhuma História, e também não há qualquer sombra de Arte, embora o que por aqui vai (se) pintar, (a)pareça, em alguns instantes, algo sombreado.


Uma dessas pinturas que exigem, de cara, certa distância dos olhos para que se lhes entenda(?), para que se lhes perceba, já que se próximos demais, ou não afastados o suficiente esses tais olhos, o que se verá pode não passar de nada mais do que uma mancha, um borrão multicor, resultado da dissolução dos contornos familiares a certas figuras, como se seus limites, de uma hora para a outra, se rompessem, e as cores, então “aprisionadas” nas linhas do desenho, atendendo a leis mais conhecidas no (nosso) mundo natural, escapassem, e, na pressa, porque há tanto contidas, ansiando por liberdade (ou querendo apenas se salvar, através dessa estreita abertura), misturassem-se todas, num atropelo de arco-íris desorganizado.


As lembranças são assim, e não porque façam história – mesmo que o façam sem tanta arte, como se colassem retratos, ao acaso, num álbum improvisado, não atendendo à ordem cronológica dos fatos, nem “se lembrando” de lhes dar legendas que lhes identifiquem, acreditando, numa atitude francamente contraditória, que não se precisará dessas etiquetas para se dizer, com educação, de que é esse (retrato) – será de algum Renato: mas qual?), de quem é aquele rosto ali colado, calado, agora, sob uma proteção de plástico, nesse livro cartonado, de páginas originalmente em branco e que virão a ser “escritas” não com palavras, mas com memórias.


Ora, se se crê, firmemente, que se recordará sempre dessas faces, sem o auxílio prestimoso e manuscrito de um “fulano de tal”, ou de “em tal lugar”, “no dia tal”, para que, então, se colecionam essas fotografias, instantâneos de uma vida marcadamente fugaz? E as lembranças assim são porque requerem um olhar sobre elas, a certa distância: de muito perto, um rosto, por mais definido em detalhes dos quais nem mais se recordava, não passa, já, de pontos (de vista); com olhos além do indispensável, numa “comparação inversa” com um quadro impressionista, o retrato se torna a precisa fotografia de um subjetivo borrão.


Todo mistério de se cultivar saudades (porque é demasiado ingênuo, mesmo que se acredite sinceramente nisso, dizer que se prefere não cultivá-las, “matando-as” com uma constante e viva presença) está em saber seu exato lugar na (nossa) vida, de onde se possa contemplar a saudade, identificando-a num retrato nítido, sem o excesso de proximidade que desfaz o encanto, e sem o exagero das lonjuras que “desencanta” a saudade, fazendo-a, tão-somente, mais um dos nossos cotidianos esquecimentos.


Nessa vasta sala de saudades, somos, ao mesmo tempo, os olhos-espectadores e o quadro admirado, podendo ser que tal simultaneidade se desfaça, e ora sejamos a própria saudade vista (de que ponto?), ora sejamos os saudosos olhos apontados diretamente para um quadro. É preciso, nesse fenômeno ótico, não confundirmos o cansaço natural a que os olhos estão submetidos (por se os ter forçado muito em aproximações que não nos revelaram ou em afastamentos que tudo sempre nos esconderam) com uma saudade mais ou menos nítida. Os olhos que enxergam a saudade apenas copiam a forma, o desenho dos que, com maior ou com menor eficiência, sempre observam o presente. Esses olhos-de-agora, estejam já precocemente cansados, por terem antecipado saudades (quando rostos são ainda tão presentes) ou naturalmente gastos (sem que tenham experimentado as devidas saudades), só veem quadros contemporâneos, mesmo que se deliciem com obras de arte passadas. Já os olhos-da-saudade se alimentam justamente do desgaste, da impossibilidade (ou, ao menos, de uma dificuldade tão extremada que beira o impossível de acontecer) de todo retrato se conter, de não romper o tênue fio que lhe conforma, e a faz, assim, a saudade, encontrando tal ponto-de-fuga, desejando salvar-se como lembrança, confundir-se com uma “nítida mancha”.


Ainda que descolada a legenda, sabemos de quem se trata: é o retrato da própria saudade.


CHICO VIVAS



domingo, 3 de abril de 2011

DOCE EPÍSTOLA SEM BALAS PARA ACERTAR LUCAS EM CHEIO




De onde esta minha mão distante não te alcança, é daí que te asseguro que te lanço olhos, num lance como que de corda, numa forca suave que te arrasta, sem sufoco, e traz-te (longe de mim sugerir que, traste, não prestas para nada) assim, já que ainda não te posso puxar pela mão como logo puxarás, pelo fio, um carrinho sem eletricidade, porque desse jeito se sabe o domínio que se tem sobre suas marchas e contramarchas. Já aqui, acarinho-te, embora, cheio dessa temerosa assepsia, hesite em afagar-te a carinha: disso, te ris de mim como se me dissesses que o que me parece sujeira é-te a delícia de te lambuzares, sendo que esse ajuste de pessoa é meu, já que sequer sabes dizer "eu", sequer sabes que em ti já existe um, sem teres consciência de que és, em todos os sentidos, intraduzível, e sequer falas ainda.


Sem dar de ré, quero retomar a mão: tento desenhar-te, mas se com palavras já sou desajeitado (a quantidade delas, aqui, é já a prova da minha falta de perícia - por isso, nem penso em pegar-te no colo, preferindo bancar um igual, divertindo-me contigo no solo, nós dois, num duo em que só para ti há vez e, embora sobre espaço, é tudo mesmo teu), imagina então se me aventuro com as tintas.

Tens nisso uma vantagem sobre mim (e isso para não falarmos, porque seria humilhante demais, dessa tua carinha de anjo), pois haverá sempre quem enxergue nos teus exercícios sobre as paredes limpas uma louvável pedagogia, podendo até ouvires um "quem sabe não será um artista!" - enquanto que eu...

Mas por experiência própria, aconselho-te a, logo que souberes distinguir uma parede em branco de um papel que não seja de parede, escolheres a folha, já que os mesmos entusiastas das tuas artes, ao perceberem que és somente mais uma criança, vão querer te "enquadrar", sem que isso queira dizer que pretendem colocar mais uma foto tua numa moldura, em lugar de destaque.

Dando-te trégua, anuncio-te que estou quase acabando este esboço, rascunho cuja arte-final jamais ficará pronta, porque se tenho alguma arte, esta é acreditar, por mais que me digam, num murmúrio tão baixo que só eu mesmo ouço, que me porto como alguém que não cresceu (e não cresci mesmo!), que o que se pinta, o que se escreve, o que se esculpe (antes de chegares a esculpir, é bom que sejas um iconoclasta, quebrando o que lhe vier pela frente) deve estar sempre por se fazer, deixando, generosamente, esse espaço na nossa alma (durante um bom tempo, confundirás alma com fantasmas: talvez estejas certo!) para a fantasia de que, não importa com que idade está a "nossa criança", tudo pode mudar.

Agora, bandeira branca! Vou-me, e sei, sem deixar-te saudades. Se a bandeira é branca, o escritor é Rosa (João Guimarães): "A saudade é a predominância do ausente". E como aqui, ausente, presente, quem manda já sabes quem é (porque sabes quem és), mesmo que ainda não tenhas consciência disso, eu é que fico, onde estiver, querendo, com esse meu jeito de adolescente grandalhão (há muito deixei de ser um e nunca cheguei a se o outro) que não sabe o que fazer com as mãos – e é ainda cedo demais para falarmos sobre a irresistível atração entre adolescentes e mãos sem terem o que fazer, mãos e adolescentes –, alcançar-te com palavras.

Se eu conseguir, ao menos que elas te embalem (presente sabes que já és) melhor do que faria eu: até me arrisco com um lápis, mas segurar-te, logo eu que não poderia fazer outro (igual, nem pensar!)...Pensando melhor, em pensamento, acho até de arranco um sorriso, seu banguela!

CHICO VIVAS

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