sábado, 21 de novembro de 2009

SUTIL DIFERENÇA ENTRE IGUAIS



Especialmente para GONÇALO JR..

...É a sensação de quem, saindo de cena, não provoca, com essa sua saída, o mais leve muxoxo na plateia, que se comporta, mesmo que, nesse dia, venha se mostrando uma plateia mal-comportada, como se não estivesse nem aí, por mais cheia, cheia de si, nem lamentando que se tenha saído cena, com as típicas manifestações de desagrado que são licitas, quando vindas da plateia, por mais que pareça um gesto mal-educado, nem aplaudindo essa decisão de se deixar a cena, tomando-a mesmo por demorada, com um já-vai-tarde tão audível que não há como, por mais moucos que se mostrem os ouvidos, dizer que não se percebeu nada.

Pôr uma pedra em cima disso, qual lapide (sem nada escrito, para não se estimular a reabertura não desse túmulo, mas do assunto, que já se quer devidamente enterrado, sem a crença messiânica de uma ressurreição), numa combinação - tácita, claro - para não se falar mais nisso, só acende o desejo, pela presença inequívoca da pedra, de não deixar isso se esvair, passando em brancas nuvens, justamente aquelas em que, para certas imaginações, surgirão os ressurrectos.

Sem abandonar, de uma vez, a pedra, já que o lápis, etimologicamente, a ela se associa (lapidar tanto pode ser algo notável, adjetivamente, quanto, agora feito verbo, o desbaste de uma para dar que do seu estado mais bruto surja uma verdadeira preciosidade, ou o ato bárbaro de se atirar pedra, até o fim), não alcançará mais êxito se, em lugar de uma pedra posta em cima do que quer que seja, prefira-se passar uma borracha, mesmo que com o risco, sempre possível, a depender da ansiedade desse passar ou da falta de tato que pode levar a se exercer demasiada pressão sobre um papel muito fino para aguentar borracha assim, de, disso, vir a se sair rasurado, com os rasgos que daí podem advir, como macerações na própria carne, sendo que o (seu) conserto, por meio de um corretivo sem dor ou através de outra opção qualquer de reparo, tal qual aquela pedra, chamará a atenção ainda mais.

Ser esquecido e o não ser lembrado, ainda que, tecnicamente, como dois profissionais de cena que são tidos, igualmente, em que pese a diferença de papéis, como atores, não são a mesma coisa. O ser esquecido (e não falo, aqui, daquele que esquece, mas, passivamente, do que sofre desse verbo sua ação na própria carne) parece (ser) algo ou circunstancial, podendo se reverter num momento seguinte, ou tão definitivo que já não se espera nada daí, quase que se esquecendo de que se foi (definitivamente) esquecido, e, como um bem que já não nos pertence, sem que se pense no seu valor quando dos inevitáveis inventários pessoais. Quanto ao não-ser-lembrado, é como se sempre se renovasse a esperança de uma retomada da lembrança, apesar de vir de uma série histórica de esquecimentos, como se a ferida crônica conhecesse, enquanto dura a esperança, uma súbita cura, com promessa de que sequer fiquem disso quaisquer cicatrizes, para, como é da natureza do não ser lembrado, a cura experimentada, na fantasia miraculosa de toda esperança, transformar-se, novamente, na mesma ferida de sempre.

Por mais discretos, por mais que tenhamos ensaiado, mesmo à exaustão, saídas (de cena) à francesa (ironicamente, pela fama que tem, ao invés de não se fazer percebida, tal saída, com seu indisfarçável sotaque, atrai os olhares para essa sua afamada discrição), por mais que não queiramos, até sinceramente, provar reações na plateia, desejamos, sim, no fundo do nosso coração de atores vaidosos, a vaia retumbante quando ameaçamos, ainda que de brincadeirinha, sair de cena, já nos contentando, se essa onda de protestos não for possível, que nossa saída seja acompanhada, fugazmente, já que isso logo se dilui no ar, por uma onda, uma marola que seja, de aplausos: isso, para quem a tem crônica, é da ferida (que é todo esquecimento) a renovada promessa de cura.

Chico Vivas

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

MIL DESCULPAS: HOJE É O DIA DA GENTILEZA




Os mais nostálgicos de outros dias, sempre com a crença, entre poética e pueril, de que “naquele tempo” tudo era melhor, ainda que tal nostalgia se refira a uma vaga saudade de um ontem tão próximo, porque ir além, retrocedendo mais no calendário, pode significar uma injustificável perda de tempo, pois esses bradam (embora insistam, com uma moderação que pode se mudar em intolerância, caso não consigam convencer de imediato, que somente levantam a questão, quase sussurrando), bradam sim contra os males da vida moderna, incluindo aí a pressa, sem se darem conta que dela não são apenas vítimas, mas seus contumazes praticantes.

Não alterando (exteriormente) o tom de voz, mas talvez já gritando em seu íntimo, alguns hão de proclamar que “ele [eu, na verdade] já foi longe demais, já disse tudo”, tendo eles próprios sido, até aqui, suficientemente tolerantes comigo, sempre em nome da gentileza, o que, a seu ver, numa reciprocidade que alimentará as relações cordiais, torna-me devedor, devendo, portanto, lhes retribuir dando por findas estas palavras, já que prosseguir, a essa altura, há de se configurar, de minha parte, como roubo do tempo alheio, notável grosseria, deixando-os assim livres para tirarem suas conclusões, como a que lhes parece mais óbvia, qual seja a de que é desse modo que eu os recompenso pela gentileza (sabe Deus o preço que pagaram por isso) de me terem escutado.

Comumente, associa-se o ato de ser gentil ao tempo de sobra, como se cada ato desses sempre devesse ser praticado em câmera lenta, caso contrário poderá ser tomado como uma indelicadeza, ainda que, no fundo, mal contendo a irritação disfarçada por um sorriso pênsil em lábios indisfarçadamente trêmulos de impaciência, considerem como igualmente indelicado o ato de fazer (ou de dizer) as coisas pausadamente, com o pouco tempo que se tem hoje em dia para vagares assim.

Pragmáticos, alguns decidiram que, não se ajustando a gentileza-sem-pressa à pressa que mal nos dá tempo para, perguntados sobre as horas, dizê-las sem sequer pararmos, ou inquiridos sobre como estamos indo, respondermos, sempre indo, sem nos voltarmos, que está “tudo bem”, ao menos se devem cultivar, quem sabe se como reminiscência de dias passados (como se a gentileza fosse propriedade do passado), três expressões, inaugurando assim uma versão de bolso para a prática gentil, como se fosse o resumo (bem resumido) de um bom livro, dando margem a que se fale dele como um leitor minucioso, sem pressa. Ei-las: “com licença”, “por favor” e “obrigado”.

Desculpem-me, gentis, mas cadê as desculpas? Ou será que uma expressão a mais faz desse resumo já um alentado volume, impraticável com nossa habitual correria?

Por favor, repetir fórmulas com o automatismo da impessoalidade não é gentileza!

Agora, com licença, pois tenho mais o que fazer do que ficar aqui, gastando palavras, que isso não enche a barriga de ninguém, embora encha, até a boca, o saco dos outros.

E como todo aquele que tem pressa, sem nem mesmo saber o porquê disso, repito, olhando, só por hábito, o relógio (que sequer uso): muito obrigado.


terça-feira, 3 de novembro de 2009

ÁVIDA VIDA VIDEIRA




Novidadeira como ela só, a natureza, não é de hoje, nos brinda com nome assim.

Mas o fruto da videira, sabe-se, não é a vida em si, dada em cachos, como se pudéssemos colher, diretamente da natureza, num pomar cultivado, seja para uso doméstico, seja com intenções comerciais, de revenda, pencas de vidas, chupando de cada uma tudo que possam (nos) dar, desidratando-a do seu sumo, deixando-a na casca, cuspindo longe seus caroços (sementes para outras tantas vidas, que assim desprezamos por termos tantas à nossa mão, bastando um leve levantar de braços para alcançar toda a vida que se quer); ainda que certas vidas sejam consumidas com casca e tudo – e é na casca, dizem os que entendem de vida, em que se encontram algumas das substâncias mais benéficas.

Assim a vida nos brinda, mesmo que não tenhamos tantos motivos para brindar, ao longo dela, cuspidos, eventualmente, para longe, caroços em pleno desprezo, consumidos de tudo o que trazemos de polpa em nós. Em vida, os brindes chegam a ser menos a expressão sincera de votos para alguém, e mais a desculpa de que precisamos para legitimar a bebida, para nos esquecermos da vida, sorvendo, massacradas as uvas, todo seu sumo, preferencialmente – dizem que é especialmente saudável – aquele que exibe, sem pudor, seu tom rubi, tão próximo da metáfora do nosso sofrer, embora igualmente assemelhado das nossas paixões, talvez porque essas também possam nos fazer sofrer: e aí, haja vinho, e nem precisam ser de boa cepa as uvas, já que não se tem mesmo o que se comemorar.

Mas, admitindo-se que a vida pudesse ser plantada, cultivada, colhida em safras extraordinárias, quantas, numa época de excessos, valendo, sobretudo, o tino comercial daqueles que são muito “vivos” [e este não é o meu caso pessoal], não seriam ceifadas, ainda no pé, deixadas essas vidas apodrecendo nos cachos, só para forçar um aumento no preço? E o que, em dias de escassez, não seriamos capazes de fazer (com a nossa) para conseguirmos um cacho de vida, até não nos importando de que estejam além do ponto, comidas por bactérias que não sabem apreciar o “sabor de uma vida”, e para as quais tanto faz uma vida doce quanto uma vida amarga, pois elas consomem, seguindo sua natureza, a vida por ser isso, e não pelo gosto que tem?

Tão difícil, a essa altura da semeadura, quando encontrar um outro nome para a videira é achar um outro sentido para a vida.


CHICO VIVAS

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