domingo, 22 de abril de 2012

OUTRAS PALAVRAS PARA O MESMO DE SEMPRE






Mesmo o Verbo já se tendo feito carne há tanto, continuamos homens (carne) de palavra(s). Desde “aqueles tempos”, é um tal de disse-me-disse, um falar-pelos-cotovelos, ou pela boca dos profetas, que dizer que isso não está no gibi, além de comparar os Livros canônicos, em sua epopeia, não raro, enfadonha, às delícias do quadro a quadro, coloridos, é descer(?) à cultura de massa, quando, como se há de ver, tudo, aqui, se passa por muito (mais) erudito.

Para começar, uma citação, e não ficaremos por aí, porque outras virão em seu rastro, pois isso de apelar para o já-dito é como puxar um fio solto que se julga curto e que se revela, assim, novelo sem fim. Nesta, sou o fulano (um fulaninho qualquer) que cita beltrano (aqui, Borges) que, por sua vez, fala de sicrano (no caso, Dostoievski).

Então, a eles, e como eu próprio já estou metido nesta história, então, a nós (todos). Diz Jorge Luis Borges que [as personagens de Dostoievski] “comprazem-se na morosa análise de seus atos”. Sei não, Borges, mas acho que andas falando de mim. Sou assim! E como não saí de nenhum romance, raramente tendo entrado em um, meus atos, entre atos cotidianos que fazem aquelas personagens parecerem mais humanas do que eu mesmo, não são grandiosos, são atos, por natureza, pela minha própria, pequenos.

Mesmo assim, comprazo-me com eles. Tomo-os como se fossem grande coisa e, cartesianamente, divido-os em quantas frações puder, no maior número, tudo isso para impressionar a mim mesmo; depois, organizo-os, dos mais simples, ainda seguindo a lição de Descartes, em direção a uma complexidade crescente, embora possam não passar de um nada que não resiste à menor dúvida que se lhes queira interpor, de acordo com o “método”.

E passo os dias nesse prazer, analisando cada pedacinho, não de um ato fundamental, mas de um corriqueiro dar (ou não) a mão, iludido de que são nesses desprezíveis e rotineiros (a)fazeres que se guardam os segredos (mais) essenciais, tentando ultrapassar a mediocridade que grita, sem meias-palavras, com o artifício da reflexão acerca do “em si” de algo sem qualquer profundidade. Por falar nisso, sei que sou “chato” (e as aspas são uma autocondescendência, um véu de tule que não esconde nada).

No(s) seu(s) “Aspectos do Romance, E.M.Forster classifica as (suas) personagens em planas – personagens reduzidas à largura e ao comprimento – e redondas – mais plenas, talvez pela semelhança com a figura geométrica a que alude, tida como perfeita, (quase) perfeitas, então, as personagens, do ponto de vista do estilo, e não da condição humana, já que a perfeição, quando aplicada aos homens, retira-lhes algo (de fundamental?), rebaixando-os(?) à condição divina. Eu, já disse, e, a essa altura, nem é preciso repetir, porque já se o percebe, sou chato – e, admitamos, um tanto corajoso, haja vista ter arrancado, ao chato que sou, umas aspas que davam a entender que eu não sou exatamente assim – e também sou plano, embora não os faça muito,planos, uma personagem limitada, sendo que aí deve estar o motivo porque procuro por profundidades, ainda que o faça em campos rasos.

Aspectos do Romance à parte, toda personagem de romance é (um) chato – se já não for, desde a primeira página, há de se tornar, pois é da natureza dos romances. Se não, vejamos: um dia, com esguio perfil, acomodado à rotina do virar as páginas, a personagem de romance cede ao sedentário hábito dessa leitura e vai-se tornando “redondo”, sem adquirir qualquer profundidade – e não sei o que o faz mais chato, se o redondo que se vai tornando ou, apesar dessa figura fora de forma, a progressiva impossibilidade de se (lhe) dar um mergulho, sob o risco de, mal enfiando a cabeça (nessas águas), dar de cara com o fundo do mar, e um fundo que não guarda, como acontece nos romances de aventuras, tesouros míticos, até mesmo riquezas mais contemporâneas, sem a poesia do mito ancestral, nem mesmo uma garrafa, entre as tantas pets, de vinho ordinário, mas com uma mensagem autêntica de um viajante anônimo que venceu os limites de sua condição de personagem e expandiu sua circunferência, ainda que tenha deixado de fazer parte do círculo dos que adoram falar dos “seus romances”, mesmo que já não seja um arco sequer da infinita circunferência que é o mundo...das palavras registradas num romance.

Profundas mesmo, quase abissais, dizem que são as personagens de Dostoiévski. E eu que não sou Aliocha (Karamázovi), apesar de verdadeiro caçula de três irmãos homens: nenhum intelectual, nenhum assassino, nenhum santo. E eu que não sou Michkin, Príncipe e Idiota, não tendo qualquer majestade para ser príncipe, com alguns traços para ser idiota, mesmo que minha idiotia seja falha de caráter e não uma patologia. E eu que não sou Raskolnikov – e se, com o nome simples que tenho, já estou fadado ao esquecimento, com um quase impronunciável, como um desses, quem há de se lembrar de mim? Mas, apesar de não ser esse (pobre) estudante, especulador filosófico [“Não passo de um piolho inchado de estética”], tenho lá os meus crimes e os meus, nem sempre respectivos, castigos.

É verdade que conheço mais os castigos. Só pelas penas, já intuindo os delitos, quase sempre sofrendo sem saber por quê – o que me distancia da Rússia e me aproxima da República Tcheca. Deixo, assim, Dostoiévski e me bandeio, condenado à procura de saber a razão dessa sentença, para o lado de Kafka. Pulando no espaço, saltando no tempo – se é mesmo que essas coisas existem, fora da relativização – vive la France!

Marcel Proust, se não estou me enredando nessa intrincada rede de citações, foi quem disse que todos os romances de Dostoiévski são sempre crime-e-castigo; e talvez, agora, digo eu, todos os romances o sejam. E, mon cher Marcel, embora seja um crime de lesa-divindade te parafrasear, será que todos os livros (e seus romances que não atam nem desatam) de Kafka também não são sempre (uma) Metamorfose, uma reinvenção de si mesmo, a partir dos atos mais simples, comprazendo-se ele em remoê-los, com as alegorias que lhe são características, morosamente, sem ligar muito para o lado heroico das personagens? E isso, quem há de me responder?

Prefiro mesmo, aliás, ficar sem resposta, já que, vindo, e vinda tal resposta da boca de quem possa me convencer dessa (sua) verdade, hei de torná-la mais uma citação, com a desvantagem adicional de, esgotadas as especulações, pelo menos, sobre esse assunto, ser inútil continuar a morosa análise.

Citação recorrente em Borges, citação de citação de... quase como num jogo de espelhos – que é, espelho, uma referência de Borges –, eis, agora, Stéphane Mallarmé: Tout au monde existe pour aboutir un livre. Portanto, como todos os caminhos levam a Roma (e esta citação é de tal domínio popular, que mesmo que tenha origem erudita, deixemo-la entregue às massas), tudo, no mundo, sabe-se lá em quantos outros mundos, piores, melhores, conduz a um livro. Pela quantidade deles, pode parecer ou que este mundo é inesgotável, prova literária da expansão incessante do universo, ou que, esgotadas as possibilidades originais, tudo, no mundo, neste nosso mundinho, em particular, é mera citação.

A princípio, as mais reconhecíveis são as citações de agora há pouco, de ontem, no máximo, por estarem ainda tão frescas, quase ainda orvalhadas pela madrugada, ignoradas já aquelas cujas madrugadas que se interpõem entre os dias e nós se contam num mundo de orvalhos, que são, independentemente da safra, sempre frescas sensações para quem, cedinho, pôs o pé no chão, nesse terreno minado, e, por isso, deliciosamente, solo perigoso para se fazer o mais corriqueiro dos gestos: andar; o mais banal dos atos: a poesia sincera de uma vida.

No entanto, talvez pela repetição, que é o que alimenta a perenidade desse disse-me-disse todo, uma citação é mais fresca, quanto mais recuada na memória dos povos, dessa gente que vive falando como se dissesse sempre palavras suas, sem saber, ou fingindo ignorar, que depois de aceso o primeiro lume no Caos (“Fiat lux: e a luz se fez”), nada mais é propriedade exclusiva de quem diz; tudo é, já, um encadeamento de citações: uns citam provérbios, esses adágios populares (allegro, ma non troppo) que outros, querendo se passar por eruditos, repetem com outras palavras, ouvidas até as sonoras aspas, seguidas do nome de seu dono, de preferência, um nome impronunciável, porque dar-lhe crédito, em vez de tirar ao citador algo do brilho que quer se emprestar, “(i)lustra-o” ainda mais; enquanto outros, o outro lado daqueles (já citados) “uns”, acham que basta se inverter a ordem das (mesmas) palavras, ou acrescentar à citação algum neologismo (talvez apenas uma acronicidade que, por ter ficado perdida no tempo, tem-se como novidade) para terem legítimo direito a arrancar as aspas rituais, quando falam, exigindo, contudo, sua presença, das “ ”, caso alguém queira levar adiante o que acabou de dizer: e se o nome simples desse autor de araque for de uma simplicidade que pode reduzi-lo ao esquecimento, ele trata de lhe acrescentar alguma “impronunciabilidade” onomástica – como esta improvável palavra, porque há quem acredite que a dificuldade ajuda a que não se seja esquecido, pela insistência, dos teimosos, em superar a dificuldade.

Quanto a mim, creio que falar...é fácil, desde que não haja a obrigação de se ser original.


CHICO VIVAS

Nenhum comentário:

Postar um comentário


Share/Save/Bookmark

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails