sexta-feira, 12 de março de 2010

A ARTE DE SER DONO DA OBRA









A arte, querem nisso acreditar os homens, como se assim a legitimassem, é a expressão do que há, ou ainda resta, de divino em nós, supondo que todos nós sejamos, potencialmente, ao menos, capazes de fazer arte, para além das malandragens de pirralho aprendendo as duras lições da liberdade limitada. Mas, talvez esta a arte seja não mais, se pudermos, nem que seja para brincarmos com as palavras, falar desse modo, o que em nós resiste, como cicatriz a sempre nos lembrar da ferida, como uma falha ontológica em um ser que deveria ser perfeito, ou quase, sendo que, ao contrário do que se pensa, a arte pode muito bem ser o que há de escandalosamente humano em algum deus – “criador” ou não.

Se for algo, genuinamente, Seu a arte, a nossa, alinhando-nos, sem intenção declarada, a Platão, não deve passar de uma arte falsificada: falsificação grosseira ou uma fina falsidade: o fato é que, assim, só nos cabe especular, já que não somos, imagens que sejamos mesmo Dele, espelhos confiáveis para afirmações categóricas sobre Seu ser, dono que é, único, das verdades apodíticas.

Sua arte, sejam astros ou satélites, parece trazer em si, como parte da própria concepção de obra acabada, luz que dispensa um projeto posterior de “esclarecimento” que lhe permita ser apreciada, independentemente da hora, do ambiente e das circunstâncias em volta. Já as nossas obras, mais concentradas no seu ser, fazem da iluminação, às vezes, uma arte à parte, luzes estas que estão a serviço da melhor percepção pelos humanos sentidos. E uma boa iluminação contempla tanto todo o ambiente, num jogo equilibrado de luz e de sombra, de revelações e de ocultações, como também contempla as obras, especificamente, com foco a elas diretamente voltados.

Raro é, e isso não me parece um defeito do projeto, embora eu próprio entenda um pouco mais, do pouco que sei no geral, de penumbras várias, que uma luz que pretende incidir, diretamente, sobre uma arte, restrinja-se, unicamente, ao contorno estrito dessa mesma obra, não ultrapassando as fronteiras de sua moldura ou as linhas de sua escrita, resvalando sempre para fora, tal qual, numa brincadeira já nostálgica, uma ciranda generosa que aceita, a toda hora, um alargamento de sua roda com a inclusão de novos participantes para os giros que lhe dão sentido, mas que, pela tontura dos volteios incessantes, acaba, em algum momento, expulsando um ou outro “brincalhão”.

Deixo as obras de arte para os que sabem dela: os que sabem fazê-la(s) arte ou obra(s), e para os que sabem compreendê-las, como obra do homem ou como arte de Deus. Aqui, fico com as sobras...de luz que, querendo se jogar, preferencialmente, sobre a obra, num abraço envolvente e possessivo, sem olhar para mais nada, para mais ninguém, ilumina o que não estava perfeito no projeto de iluminação, talvez nada além do “vão” intervalo entre uma arte e outra obra. Para os olhos, sinceramente ou falseando a função, que caem sobre aquilo para o qual lhes puxa a luz, nada existe fora do que eles mesmos alcançam, a não ser os intervalos sem significados e vãos sem muito sentido – a não ser o de serem o que já são, a olhos vistos, ou seja, vãos, e não porque os olhos que (os) veem assim sejam olhos vãos.

Para meus olhos, olhos que são o retrato de um sentido, há signos espalhados nesses espaços, aparentemente vazios. Não sabendo, eu, fazer arte, passado, há muito, meu tempo de perdão garantido para as molecagens da idade, eu saio por aí (na verdade, por aqui) escrevendo, focando um ponto e deixando-me absorver pelas valas comuns que separam, como intervalos necessários a um mínimo de compreensão, as palavras, casocontráriocomosehaveriadecompreenderoquedigosemparar?

De tudo o que escrevo, nada sairá, por melhor que seja a “iluminação”, por melhor que seja a luz de generosos olhos-leitores, generosos, para não dizer, contra mim mesmo, uns perdulários, ao se gastarem assim, aqui, comigo, por mais que tais olhos se debrucem sobre pontos específicos, mantendo-se circunscritos às invisíveis marcas que desenham as margens: se quiserdes vos arriscar, olhos, arriscando a energia de vosso olhar, aconselho-vos, olhos, a não vos deterdes, como se diante de uma obra de arte, naquilo que ora ve(r)des, olhos de qualquer cor, pois, em havendo algum sentido, aqui, significado só se achará com a ajuda da luz – quiçá, da “Luz”, numa iluminação em definitivo..

Talvez seja só um ponto – quem sabe se justamente o ponto final, o que (já) está por vir. Sei que, tendo à disposição uma ampla sala, atulhada, quase que numa experiência barroca, de obras, cópias de uma falsidade (ainda que com a intenção verdadeira de salvar lembranças), é fácil cair na armadilha e deixar-se levar pelo que se vê, mesmo que, para não parecer que se engole tudo, exerça-se o legítimo direito de criticar, ainda que as obras sejam demasiadas, a ponto de se apresentarem encostadas umas nas outras para que caibam nos limites do ambiente para elas disponibilizado.



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