Para quem vive em busca de atitudes mais cientificamente corretas, embora a correção na vida pertença mais ao campo da ética ou da moral do que ao da ciência propriamente dita, a venda e, por correspondência, já que não há comércio de um só via, a compra de remédios fracionados é um prato cheio, não faltando argumentos a favor, e quanto aos que teimam em se apresentar como (do) contra, nadando contra a correnteza, sempre na defesa dos seus direitos, são abatidos no ar, antes mesmo de chegarem a uma expressão total – como se, com ironia tirânica, já que o tema é mesmo o fracionamento dos remédios, quebrando em pedaços a argumentação: e isso não é nada civilizado.
Saudade, apesar da dor que aqueles que a sentem dizem experimentar na própria carne, não explicando, convenientemente, o quanto há aí de poesia (e esta, sabe-se, bebe muito nas fontes da dor) e o quanto há de uma hipersensibilidade, não é, pelo que consta nos compêndios da ciência específica, uma doença, ainda que possa abater, prostrar, fazendo mesmo surgir certos sintomas que podem facilmente ser confundidos com uma patologia “de verdade”.
Saudade também não é, necessariamente, um mal: “É a persistência do ausente”, como queria Guimarães Rosa. Pode mesmo ser um bem: por mais que isso revele, a olhos demasiado científicos, um certo viés patológico, masoquista, é bom sentir saudade; e o bom de senti-la está no (suposto) remédio: sua morte. Já que é matando a saudade que se a cura, não se conhecendo outra solução, desde eras em que a medicina flertava, sem culpas, com a magia, até estes dias em que a douta Medicina esconde de todos sua verdadeira origem, como se temesse ver revelado, de uma hora para outra, em meio a toda a sua tecnologia de ponta, o truque mambembe do qual nasceu.
Assim, a saudade é, se for, um mal, e é, simultaneamente, um bem. Deixando, por ora, o mal de lado, ainda que todo mal seja permanentemente vizinho do qualquer bem, tomemo-la pelo remédio: como, então, fracionar a saudade?
Porque o remédio para a saudade de cada um, e cada qual sente sua própria saudade, de um jeito todo próprio, não é, portanto, igual àquele que serve para outro. “Comprar” uma saudade inteira, descobrir que só precisava de uma fração dela, é deixar abandonada, largada em qualquer gaveta, às vezes, perigosamente à mão de quem, tão infante, não sente saudade, ou não a percebe como um mal que precisa de remédio, uma parte considerável dela, sem que essa saudade dure para sempre, podendo, assim, voltar a ser utilizada em outra ocasião.
Mas, precavidos em excesso – todo excesso é um mal, mesmo sendo de precaução –, ao comprar menos saudade do que é rigorosamente indispensável para a solução do problema, não apenas não acaba com esse mal, levando-o mesmo a aumentar de tamanho, ainda que não haja ciência que até hoje tenha tido êxito em mensurar sentimentos, em especial a saudade.
Enquanto aqueles que têm argumentos contra o fracionamento dos remédios lutam para chegar até o fim de sua argumentação, sendo constantemente interrompido com os argumentos a favor, muito fortes por sinal, a coisa não anda. Não andando, ficamos nós na saudade, ora percebendo-a, na própria pele, como uma dor, apesar de não se conseguir expressá-la em palavras, sejam estas exatas como gostam os mais científicos, sejam mais imprecisas, tão ao gosto dos poetas, ora ansiando por ela como um remédio milagroso.
E não é impossível, mergulhados em contradições como é todo homem, sendo mesmo, desconfio, a contradição sua real razão de ser, aquilo que o torna diferente de qualquer outro ser, que se possa sentir saudades, ao mesmo tempo, como o mal e como a solução para esse mal, como a doença e seu respectivo remédio, como o problema e a mais científica das (suas) soluções.
CHICO VIVAS
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