Tenho mais de um amigo. Mais de dois. De três. De quatro. Mais de cinco amigos. Opa! há aí, aqui mesmo, uma deslavada mentira, ou então faço uso de uma matemática para lá de equivocada, o que é um contrassenso, quase um insulto a uma ciência que se gaba por ser tão exata. E se eu insistir em dizer que não, que não há erro crasso nessa minha conta, e, além disso, que também não houve mentira, a questão deixa o livro de matemática para se abeirar, no livro de ciências (mais) naturais, do capítulo da anatomia humana, das notas bizarras, ilustradas, sobre as (nossas) excentricidades: podendo “conter” nos dedos de uma única mão todos os amigos que tenho, que digo ter, e calculando-os ainda para mais de cinco, faço-me assim algo raro (talvez a única possibilidade que me seja dada de não ser tão comum) pela inusitada presença de seis dedos, ou mais, só não afirmando, de cara, exatamente, quantos dedos porque, afinal, quando o assunto são eles, os meus amigos, por mais sincero que deseje ser, fico, habitualmente, “cheio de dedos”: e quanto mais amigos, mais eu fico assim, cheio deles, de amigos e de dedos, sem que com isso eu esteja me esforçando para me tornar ainda mais bizarro.
Toda essa controvérsia, no entanto, é culpa da língua. Os amigos que tenho, conto-os nos dedos de uma única mão: e para que haveria de querer mais – quero dizer, dedos, já que, sabe todo aquele que já fez conta na ponta dos dedos, por menos versado em cálculos, que basta uma mão para que, com ela, se se desejar, se alcance, pelo menos em número, o infinito. Não importa, na verdade, quantos sejam os amigos – se um só que valha por muitos, embora sejam poucos os que se contentam com isso; se muitos amigos que não valem nada (belos amigos esses! sendo que é bem possível que só se os tolere assim, sem valor, justamente por serem tão...belos amigos); se muitos amigos, entre os quais há alguns que valem muito; se poucos amigos, todos igualmente “valorosos” (dizer deles que são “valiosos” faria com que eu parecesse um amigo demasiado “calculista”, mesmo que não tenha, nesse caso, descido – tão baixo – a um número exato); ou ainda se cinco amigos, facilmente identificáveis com cada um dos dedos da mão.
Nada disso importa, pois sejam quantos forem, conta-se-os na mão, contando-se apenas com cinco dedos: depois do quinto amigo, sem ordem de preferência ou de importância, volta-se para o primeiro dedo, contando aí o sexto, e, daí por diante, com só uma mão, pode-se ter, em amigos, um milhão, mesmo que não se os tenha sempre tão nela, assim, amigos à mão, ainda que sejam todos amigos de mão cheia, mesmo que se fique cheio de dedos em se ombrear com eles, temendo parecer, nessa comparação, um mínimo amigo, hesitando em lhe apertar a mão anelada (de “anelo”, e não por causa de um compromisso formal).
Enfim, é a língua, ela própria, a única culpada de tudo isso.
A ponta dos meus dedos – e isso está sempre na ponta da minha língua – anda gasta: e se assim ela está por eu ter muitos amigos ou por, embora admirador do(s) frio(s), não ser um calculista e, frequentemente, dos amigos perder a conta, é detalhe sem maior relevância. Só preciso mesmo me preocupar quando disser que “não tenho um único amigo”, sendo a língua, ainda por cima, inocente. Mas, enquanto puder pôr nela todas as (minhas) culpas, até me arrisco (será que por conta disso perderei um amigo?) a mostrar o dedo médio, apesar de ele não precisar de ajuda da língua para se expressar verbalmente, já (lhe) bastando sua expressividade plástica, como a querer dizer, por mais ambíguo que seja esse meu gesto, que o amigo em questão é grande, o máximo, como este dedo.
CHICO VIVAS
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