Não vai, aqui, nenhuma História, e também não há qualquer sombra de Arte, embora o que por aqui vai (se) pintar, (a)pareça, em alguns instantes, algo sombreado.
Uma dessas pinturas que exigem, de cara, certa distância dos olhos para que se lhes entenda(?), para que se lhes perceba, já que se próximos demais, ou não afastados o suficiente esses tais olhos, o que se verá pode não passar de nada mais do que uma mancha, um borrão multicor, resultado da dissolução dos contornos familiares a certas figuras, como se seus limites, de uma hora para a outra, se rompessem, e as cores, então “aprisionadas” nas linhas do desenho, atendendo a leis mais conhecidas no (nosso) mundo natural, escapassem, e, na pressa, porque há tanto contidas, ansiando por liberdade (ou querendo apenas se salvar, através dessa estreita abertura), misturassem-se todas, num atropelo de arco-íris desorganizado.
As lembranças são assim, e não porque façam história – mesmo que o façam sem tanta arte, como se colassem retratos, ao acaso, num álbum improvisado, não atendendo à ordem cronológica dos fatos, nem “se lembrando” de lhes dar legendas que lhes identifiquem, acreditando, numa atitude francamente contraditória, que não se precisará dessas etiquetas para se dizer, com educação, de que é esse (retrato) – será de algum Renato: mas qual?), de quem é aquele rosto ali colado, calado, agora, sob uma proteção de plástico, nesse livro cartonado, de páginas originalmente em branco e que virão a ser “escritas” não com palavras, mas com memórias.
Ora, se se crê, firmemente, que se recordará sempre dessas faces, sem o auxílio prestimoso e manuscrito de um “fulano de tal”, ou de “em tal lugar”, “no dia tal”, para que, então, se colecionam essas fotografias, instantâneos de uma vida marcadamente fugaz? E as lembranças assim são porque requerem um olhar sobre elas, a certa distância: de muito perto, um rosto, por mais definido em detalhes dos quais nem mais se recordava, não passa, já, de pontos (de vista); com olhos além do indispensável, numa “comparação inversa” com um quadro impressionista, o retrato se torna a precisa fotografia de um subjetivo borrão.
Todo mistério de se cultivar saudades (porque é demasiado ingênuo, mesmo que se acredite sinceramente nisso, dizer que se prefere não cultivá-las, “matando-as” com uma constante e viva presença) está em saber seu exato lugar na (nossa) vida, de onde se possa contemplar a saudade, identificando-a num retrato nítido, sem o excesso de proximidade que desfaz o encanto, e sem o exagero das lonjuras que “desencanta” a saudade, fazendo-a tão-somente mais um dos nossos cotidianos esquecimentos.
Nessa vasta sala de saudades, somos, ao mesmo tempo, os olhos-espectadores e o quadro admirado, podendo ser que tal simultaneidade se desfaça, e ora sejamos a própria saudade vista (de que ponto?), ora sejamos os saudosos olhos apontados diretamente para um quadro, é preciso, nesse fenômeno ótico, não confundirmos o cansaço natural a que os olhos estão submetidos (por se os ter forçado muito em aproximações que não nos revelaram ou em afastamentos que tudo sempre nos esconderam) com uma saudade mais ou menos nítida. Os olhos que enxergam a saudada apenas copiam a forma, o desenho dos que, com maior ou com menor eficiência, sempre observam o presente. Esses olhos-de-agora, estejam já precocemente cansados, por terem antecipado saudades (quando rostos são ainda tão presentes) ou naturalmente gastos (sem que tenham experimentado as devidas saudades), só vêem quadros contemporâneos, mesmo que se deliciem com obras de arte passadas. Já os olhos-da-saudade se alimentam justamente do desgaste, da impossibilidade (ou, ao menos, de uma dificuldade tão extremada, que beira o impossível de acontecer) de todo retrato se conter, de não romper o tênue fio que lhe conforma, e a faz, assim, a saudade, encontrando tal ponto-de-fuga, desejando salvar-se como lembrança, confundir-se com uma “nítida mancha”.
Ainda que descolada a legenda, sabemos de quem se trata: é o retrato da própria saudade.
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