“BOSTRICHUS TYPOGRAPHUS”...
Dito assim, quase não resta dúvida: é o mais puro latim. E soa a nome científico, só não se adivinhando ainda a que reino pertence: se ao vegetal ou ao animal, embora esse “tipógrafo” no nome nos remeta, imediatamente, ao ato de escrever (ou, ao menos, ao de compor o escrito), e isso tem estreita ligação, até mesmo primordial, com a pedra, o que, na sequência desses motivos encadeados, já nos leva a considerar, além dos outros dois, também um terceiro reino – o mineral.
Como, no entanto, esse mistério vai-se tornando “o bicho”, pronto, desvendemos, de uma vez, esse enigma: é ele mesmo! É um, mais um entre os tantos que habitam este mundo com três reinos bem definidos, entre os quais a apenas um, o mesmo do tal bicho, um inseto, pertencemos, mesmo que nos sintamos legítimos soberanos de todos os três, e mais, se houvesse.
O Bostrichus leva esse (sobre)nome de tipógrafo por causa de uma peculiaridade que o faz único: um jeito de andar tão marcante que, ao longo do tronco das árvores pelas(os) quais passeia, vai deixando um rastro facilmente confundível com letras, como se fossem caracteres tipográficos.
Pronto! Está decidido, e esta não foi uma decisão tomada intempestivamente, no calor da emoção de ter descoberto esse espécime, uma espécie de remoto escrito: trocaria minha humanidade banal, que sequer se grava por onde passo, mesmo quando piso fundo na ilusão de assim marcar presença, pela irracionalidade desse ser que homens instruídos, talvez com grau de doutor, afirmam ser-nos inferiores na escala evolutiva.
Mesmo sem poder comprovar sabedoria acadêmica, rebato suas afirmações, porque, com um bicho assim, capaz de “escrever” com seus próprios pés (sem ter sido levado a tal por insuficiência das mãos), e, sobretudo, por fazê-lo não de caso pensado, como se maquinasse a história, mas com a naturalidade de quem, ao acaso, passava por ali, distraidamente, quem somos nós?
Involuído ele? Comparo-o comigo (para evitar a descortesia de compará-lo, sem permissão, com outros), apesar de saber, e para tal não é preciso ser muito doutor, que não sou padrão no meu reino para essas comparações com os meus semelhantes; e comparando-nos, vejo, de cara, as minhas próprias desvantagens: para começo de conversa, se eu tivesse de escrever com meus pés, faria isso com a mesma inabilidade com que ando com minhas próprias pernas – errático, com destino incerto, algo trôpego, como se não pudesse respeitar os limites das margens -, e fazendo o que faço com as mãos (com as quais, admito, um tanto vaidoso, coisa, aliás, de gente que acho que chegou ao topo), não deixo, por onde passo, quaisquer caracteres que me sirvam como tipicidade.
Não sendo, como não sou, “tão evoluído” quanto esse inseto (que inveja, meu Deus!) do Bostrichus Typographus, eu ando...ando à procura de troncos vestidos com traje de passeio nos quais possa caminhar, e até, voltando atrás na tal escala da evolução, fazendo “macaquices” e assim, nesses troncos, deixando os pés para o ar, andando com as mãos, querendo a banana sem querer plantar sua semente: e nem assim eu alimento expectativas mais otimistas de vir a me tornar um homem marcante.
É desse jeito que vou vencendo as estradas, tão “à mão” que, se elas forem um desafio, diria que as venço à unha, unha que, por isso, fica, por tanto se agarrar às estradas, suja, como se trouxesse consigo as marcas dos caminhos percorridos e que há pouco chamei de (já) vencidos com o mesmo sentido e não porque eu sempre saia (do caminho) como o vitorioso da jornada.
O que o Bostrichus, nessas suas andanças por troncos diversos, deixa “escrito” pouco importa; talvez nem mesmo faça sentido para a nossa semântica essas suas “canetadas” em árvores à beira do (seu) caminho, desde que tomemos tais caracteres e queiramos assemelhá-los aos nossos, atribuindo a estes um caráter evoluído em relação àqueles, com o argumento de que não são apenas marcas aleatórias, mas, nossos, têm significado, enquanto que os do Typographus...
Assumo, agora, em nome da verdade, a defesa do pobre bichinho: se toda a questão é que ele escreve (só) por escrever, sem querer dar sentido preciso ao que faz, atendendo a sua natureza, se isso (o) faz inseto, então eu, o que é que eu sou?
Homem nenhum há de querer me ter como seu semelhante, já que me assemelho tanto ao Bostrichus, e o inseto, que deve também ter as suas vaidades (afinal, é ou não é um “escritor”?), será que aceitará que, sem que eu saia do mesmo reino, passe a habitar o alto do pódio em que ele já está ou será que ele, sem desejar concorrência tão feroz como a minha para esse “escrever em troncos” (sem, contudo, fazer, como ele, qualquer sentido), deixar-me-á de lado, “vegetando”, a ponto de ser chamado a mudar de lugar, migrando para outro reino?
Respostas só mesmo ele pode dar. Perguntas eu mesmo faço, homem que sou, involuído que permaneço. Memória(s) do que escreve ele não há de ter: lembranças de tudo que já “andei em troncos”, também eu não tenho, mas não me esqueço de que por ali já andei, mesmo que com essa virtualidade que, hoje, nos serve como desculpa para as distâncias.
E mesmo não sendo marcante, espero ter acabado de, de coração, ter “passado por cima” de ti, como um inseto inofensivo, no teu tronco, ainda que, poesia à parte, o melhor de ti, porque a evolução nos fez assim, esteja mais no alto, especialmente quando o coração se torna comum demais e "pensamos" em usar a cabeça.
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