O VOTO
OU
A GALINHA DOS OVOS DE OURO
Devagar com essa urna porque, pelo que nos querem fazer acreditar, nossa democracia é de um barro ainda mais instável do que aquele que – à parte o shakespeariano Próspero que afirmava ser o sonho a matéria de que somos feitos – nos fez, envoltos em Seu hálito divino, homens...e mulheres.
É pura mistificação essa ideia de que não se pode, pela importância que se lhe atribui e pelo intervalo entre um e outro, desperdiçar o (próprio) voto. Mesmo que pareça pouco razoável perdê-lo (e para sempre, ao menos até a próxima oportunidade) propositadamente, isso é uma opção de quem – santa Democracia quebradiça em sua cerâmica mal-cozida! -, compulsoriamente, tem de votar: não tendo a alternativa de não o fazer, se assim o desejar, que se o desperdice, se quiser.
Se há consequência para ato assim? Há; como há, seguindo determinada lei – e da qual não conseguimos escapar, mesmo que nos insurjamos contra ela com todas as nossas forças, salvo algum “milagre” -, consequência para todo e qualquer ato, sabendo-se mesmo que houve até para um ato de Deus, supostamente acima de todas as leis, ao brincar, como criança ainda em precário desenvolvimento estético-motor, com a deliciosa plasticidade do barro: eis-nos aqui a não (me) deixar mentir, embora a própria mentira seja uma das tais consequências do ato e não menos uma arma da democracia.
Soa a chantagem atraente – há os que a aceitam, desde que assim, embalada com papel incomum, raro nas mãos de qualquer um e que seja um diferencial, símbolo da exclusividade de uma “classe” de homens...e mulheres -, se dizer que, perdendo-se o voto agora, só daqui a tantos anos para se consertar os efeitos de um possível erro: se, na ponta do lápis, é assim mesmo, que andor alquebrado é esse que se tem de carregar até a próxima festa do padroeiro, sem o direito de, descobrindo o santo em falso, parar e demovê-lo das alturas, garantindo-lhe o direito de defesa? Ao contrário, do jeito que a procissão foi formada (alguns dirão que justamente assim já como consequência dos votos errados, abrindo espaço, sem trocadilho filosófico-reprodutivo, para que o ovo e a galinha prolonguem a eterna querela sobre o privilégio(!) nas primícias mundanas), garante-se, mesmo com toda a obrigatoriedade, assento acolchoado na plataforma que se sustenta nos ombros dos fieis, contando-se com o esquecimento entre os calendários.
Outro ídolo que se quebra facilmente, a memória não é mais um instrumento de cidadania, sendo o esquecimento, apesar da toxicidade dos seus eflúvios, o cano pelo qual escapa a pressão diária: de ser cidadão consciente, de não poder não sê-lo, de ter de carregar andores de obrigações “legais” por andares sem conta nesse alto edifício sem elevador; enfim, de jamais errar...
Numa democracia em que há o certo e o errado, há algo errado: para muitos, “certamente”, o errado aqui sou eu, ao falar assim, desprezando a Ética. Errado está não porque o erro foi parar aí, mas porque o autonomeado certo, como um deus sem misericórdia, ameaça, com sua mão forte – retórica que seja, mas nem por isso menos pesada -, o barro comum: de um lado, prometendo-lhe, se andar na linha (certa) a continuidade de um paraíso (que se admite assim, sem contestações), e de outro, tendo em vista justamente o “outro lado”, o inferno – que, como se sabe, é sempre...o outro.
CHICO VIVAS
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